Título: Inapetência administrativa paralisa máquina estatal
Autor: Miguel Reale Júnior
Fonte: Valor Econômico, 10/06/2005, Opinião, p. A12

Dizia-me o querido e saudoso amigo senador Severo Gomes que nada pior do que a "porcada magra". O avanço do PT aos cargos públicos em comissão foi avassalador. Foi com sede ao pote, aumentou o pote e quer dele se apossar para sempre. Cresceram os cargos em comissão no governo Lula. Milhares foram criados e estão quase todos preenchidos. O aparelho de Estado foi tomado pelo aparelho partidário, com elevado prejuízo para a eficiência administrativa. Constata-se que há no governo a mais plena ausência de gestão, dada a falta de efetiva ação governamental nos mais diversos setores, do saneamento básico à área dos direitos humanos. A atual inapetência administrativa leva a máquina estatal, já pesada por natureza, a se paralisar totalmente. Esse quadro, por vezes, facilita a corrupção em vista da ausência de atuação eficaz e de busca de resultados por parte do governo. Se nem sempre a incompetência é fonte de corrupção; no entanto, cria terreno propício à imoralidade administrativa, dada a falta de objetivos e controles. Vou referir apenas alguns fatos ilustrativos do panorama descrito, com referência à inoperância dos programas sociais e à adoção de medidas de cunho meramente político e propagandístico. 1) Em 24 de outubro a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República lançou com alarde o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Um defensor de direitos humanos denunciou a violência a jovens internados na Febem de São Paulo, o que as autoridades constataram ser verídico. Passou esse defensor dos direitos humanos a sofrer ameaças à sua integridade física. A entidade Conectas Direitos Humanos, em meados de fevereiro, oficiou ao secretário especial de Direitos Humanos solicitando que essa pessoa fosse incluída no Programa Nacional de Proteção de Defensores dos Direitos Humanos. Informando São Paulo estar entre os Estados em que seria implantado projeto do serviço, a secretaria limitou-se a oficiar aos órgãos estaduais, pedindo as medidas cabíveis, sem tomar qualquer atitude concreta diante do risco iminente. A Conectas, em ofício à secretaria, estranhou a inoperância do programa. 2) No campo dos direitos humanos, o nosso país, em 2004, fez dois discursos: um interno, de defesa dos direitos humanos, outro externo, visando a objetivos políticos, contrariando nossa tradição na Comissão de Direitos Humanos da ONU e o princípio constitucional (art.4°, II) da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. O nosso país votou favoravelmente à no-action motion para afastar qualquer resolução sobre a questão dos direitos humanos na China. Em outra posição incompreensível para um governo de compromissos com os princípios humanitários, o Brasil, em 2003 e 2004, votou contra as resoluções que condenavam a Rússia pela situação dos direitos humanos na República da Tchetchênia. Essa atitude indica ter-se feito do cenário internacional um palco de ação política e econômica, para repercussão interna do acolhimento do governo na China e na Rússia, fazendo-se tabula rasa de princípios fundamentais.

Aparelho de Estado foi tomado pelo partidário, com elevado prejuízo para a eficiência da ação governamental

3) O recente levantamento do IPEA indica o descaso com programas sociais: o de saneamento básico, dos ministérios da Saúde e das Cidades, aplicou apenas 7 milhões de reais de um orçamento de quase um bilhão de reais. 4) O tão propalado Sistema Único de Segurança Pública tornou-se apenas um jogo de cena. A lei que criou o Fundo Nacional de Segurança Pública, de 2000, determina que os Estados devem receber verbas constantes do orçamento, conforme projetos apresentados, para ações preventivas e repressivas na área de segurança, como sucedeu no governo anterior. Jamais foi necessário aderir ao sistema, pois a matéria é regulada por lei e há um plano nacional de segurança pública. Criou-se uma instância desnecessária, a de adesão ao sistema, com fins meramente propagandísticos, enquanto medidas de política criminal de cunho social inexistem. Os Estados denunciam que, no ano passado, receberam parcas verbas do denominado Sistema Único de Segurança Pública. Este ano, estudo do IPEA mostra que, da verba de R$ 421 milhões destinada à segurança pública, até o momento apenas R$ 8 milhões foram gastos. 5) Importante no quadro de nossa economia, o programa denominado Primeiro Emprego tem previsão orçamentária de R$ 140 milhões, dos quais utilizados unicamente R$ 5,5 milhões. 6) O Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos recebeu dotação orçamentária de mais de R$ 600 milhões, mas tão só R$ 1 milhão foi efetivamente aplicado. Em suma, a não aplicação das verbas não decorre apenas ao contingenciamento das mesmas pelos ministérios da área econômica, mas deflui, sem dúvida, da ausência total de ação governamental, da falta de gestão, da inapetência administrativa. 7) Por outro lado, verifica-se a absoluta ausência de critérios na administração do Setor de Saúde Complementar. Noticia o conhecido jornalista Sebastião Nery no jornal Tribuna da Imprensa, de 18 de abril deste ano, que a Agência Nacional de Saúde vai premiar uma empresa de seguro de saúde que apresenta reconhecidamente graves irregularidades no atendimento aos seus clientes. Malgrado essas circunstâncias, o plano de saúde veio a ser contemplado com carteira de mais de 100 mil clientes, antes pertencente a empresa em situação delicada, inesperadamente liquidada. A beneficiária não assumiu qualquer das obrigações da empresa liquidada, deixando todos os credores, a ver navios. As denúncias do mensalão são tão graves que o preocupante quadro acima se torna menor. Com Collor instaurou-se a Cosa Nostra, ação entre amigos para extorquir. Agora, é mais grave: atinge-se o cerne da democracia, o funcionamento das instituições. Dizer que atingido é o PT, mas não o governo, seria apenas bisonho se não fosse trágico. É o Brasil sem rumo e timoneiro, com as instituições fazendo água.