Título: Arquiteto para sempre
Autor: Heloísa Magalhães
Fonte: Valor Econômico, 10/06/2005, EU & Fim de Semana, p. 10 à 13

Capa Aos 97 anos, Oscar Niemeyer não descansa. Continua imaginando e desenhando - para Brasília, ainda e outra vez. E pensa com insistência numa arquitetura generosa, que não sirva apenas para fruição das elites

Passados 45 anos da inauguração de Brasília, o arquiteto Oscar Niemeyer está completando seu projeto para a capital federal. Aos 97 anos, criou um complexo para atividades culturais, que havia planejado na década de 50 e não foi realizado. "Quem chegava no eixo monumental, saía da Praça dos Três Poderes, alcançava a Catedral e se espantava diante da terra vazia. O (Joaquim) Roriz, governador atual, foi esperto. Começou a completar uma parte importante que faltava. Agora, Brasília está acabando", diz o arquiteto que criou os belos prédios públicos que tornaram a capital federal conhecida no mundo. A estrutura da biblioteca está pronta, o museu está subindo do outro lado e vão começar outras construções (cinemas e salas de espetáculos, cujos projetos já estão prontos, mas ainda não foram contratados). "O museu é espetacular, pelo volume da obra. Tem uma cúpula de 80 metros", diz Niemeyer (na basílica de São Pedro, no Vaticano, o vão é de 40 metros). Para Niemeyer, havia um outro sentimento de projeto inacabado. Desta vez, em São Paulo, no Ibirapuera: "Agora o auditório está pronto. Existia desde o princípio uma marquise interligando os prédios. Mas, com a construção do auditório, tem que cortar a marquise, para não dividir a praça em duas. Por mais incrível que pareça, até hoje não cortaram a marquise. O Patrimônio não deixa. Desde o início da construção, eu digo que quem projetou a marquise fui eu e, logo, posso cortar onde eu quiser. Mas não entendem. É uma coisa tão clara", reclama, com sua fala mansa, pausada, delicada, mas sem qualquer tom de resignação. Niemeyer também comenta a decisão da prefeitura carioca de colocar uma faixa com os dizeres "Prefeitura do Rio" no arco que compõe a Praça da Apoteose, onde as escolas de samba finalizam o desfile no carnaval e onde também são promovidos shows durante o ano. "O prefeito (César Maia) é um idiota. Ele fez isso para chatear. Ele não procurou saber por que tem aquele arco. Aquele arco foi o Darcy (Ribeiro) e o (Leonel) Brizola que me pediram e disseram: 'Oscar, faz um feixe lá que simbolize o sambódromo'. Eu fiz um arco solto. É bonito. [Colocar uma faixa] é uma mediocridade, é a burrice ativa. O Patrimônio já comunicou à Justiça, ele vai ter que tirar", afirma o arquiteto, com total tranqüilidade. Aos 97 anos, Niemeyer está a todo vapor, repleto de novos projetos: "Tenho um novo trabalho na Alemanha. É um centro aquático com cinco piscinas. Fica em Potsdam, bem perto de Berlim. Os alemães (da prefeitura local) estiveram aqui. Eles estão muito entusiasmados, porque é uma forma mais livre, a que não estão habituados", diz. São várias piscinas para faixas de idade diferentes. Cada uma tem ambiente próprio, mas se unem, cobertas por cúpulas de vidro . Niemeyer foi contatado para criar as instalações de um teatro em Ravelo, Itália, na Costa Amalfitana: "O local é muito bonito. Fica numa encosta e se vê um panorama fantástico", conta. Da Espanha, foi chamado para projetar um museu, do Centro Cultural Príncipe de Astúrias, que concedeu um prêmio à arquitetura de Niemeyer e o escolheu para desenvolver o projeto. Foto: Nelson Perez/Valor

Oscar Niemeyer: É preciso ver a vida com mais simplicidade. Estamos aqui de passagem. Cada um escreve sua história e o tempo apaga. Aí acabou" Esse arquiteto do Brasil e do mundo concluiu recentemente a nova sede da Itaipu Binacional. "É um conjunto grande, junto à represa. Fica no limite com o Paraguai. O governo de lá gostou do que fiz no lado brasileiro e me pediu para fazer uma coisa idêntica do outro lado." Niemeyer mantém uma rotina. Todas as manhãs, e muitas vezes nos fins de semana, às 9 horas ele já está em seu escritório, no último andar de um prédio art déco, na avenida Atlântica, com vista belíssima e inspiradora para o mar de Copacabana. Só sai de lá na hora do jantar. "Muitas vezes, fico sentado aqui, bem quieto. Parece que não estou fazendo nada. Mas estou pensando. Fico montando um projeto na cabeça", explica. A prefeitura de Santos, litoral de São Paulo, solicitou a Niemeyer a criação de um complexo cultural e de lazer, uma construção que avançará sobre o mar. Há pressa. Representantes do governo municipal têm procurado o arquiteto e o engenheiro responsável pelos cálculos, José Carlos Sussenkind, querendo saber do projeto. "Outro dia, o Oscar me disse: 'Está pronto', comenta o engenheiro. Então eu pedi para ver e ele respondeu: 'Está pronto, mas aqui na minha cabeça." Niemeyer confirma: "Uma vez, o Einstein estava parado, quieto, e perguntaram o que se passava. Ele disse que estava trabalhando. A arquitetura está mesmo na cabeça. Depois você desenha. A mão é o veículo." Foto: Patricia Santos/Folha Imagem

Com Fidel Castro, num momento de comunhão ideológica em Niterói, 1999: Niemeyer não tem dúvida de que, sendo o capitalismo o que é, "a revolução" pode tardar, mas vem Há casos, como o de partes do complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, em que Niemeyer não precisou de mais de uma noite para criar. "Quando Juscelino Kubitschek, com entusiasmo, me falou que queria fazer o bairro mais bonito do mundo, com igreja, cassino, clube, uma represa, disse que queria o projeto para o dia seguinte. Fui para o hotel, trabalhei a noite inteira e no dia seguinte entreguei. É o cassino que está lá". Niemeyer diz que foi praticamente intuitiva a criação do museu de Niterói, aquele que parece um disco voador pousado junto ao mar. Desenhou num guardanapo de papel. "Cheguei no terreno, vi a paisagem, o mar, as montanhas do Rio. Pensei que aquilo tudo tinha que ser preservado. É isso que me compete, a arquitetura precisa sempre uma explicação. O espaço faz parte da arquitetura", avalia. "Gosto de Niterói. As coisas são modernas, o ambiente é muito bom. Estamos fazendo uma praça na beira do mar. Quem está na praça vê a baía (da Guanabara), as montanhas do Rio. De um lado, tem o teatro em que o palco abre para a praça, de modo que vai ter música, teatro, vai ser uma praça diferente". E fala da catedral, que será completamente diferente: "Tenho muito empenho em fazer a catedral de Niterói. Queria uma cúpula de 40 metros, que ficasse em cima da nave e que ficasse solta. Então, estudei três apoios e a estrutura subiu e a cúpula virou uma catedral. Parece mesmo uma catedral, mas é tão simples..."

"A gente tem que olhar para o céu e sentir que é pequenino. Quem não sente isso não [será capaz de] fazer nada de importante."

"Quando pensei no projeto que está sendo chamado 'O encontro das águas', em Manaus, foi assim: pensei em um dia, desenhei e já estava tudo pronto." O projeto simboliza realmente o encontro das águas do rio Negro com o Solimões. "Fiz uma cúpula em cima (do prédio) que parece a água que sobe e encontra a outra. Às vezes, a arquitetura tem um sentido mais escultural. Talvez esse seja um dos projetos que mais gostei de fazer, pois a arquitetura ligada às artes plásticas transforma-se numa coisa diferente." Exatamente pelo que chama de "sentido mais escultural", Niemeyer acredita que esse projeto esteja entre os que se tornam mais acessíveis à população. "A gente trabalha para os governos e os ricos. O pobre está fodido. Pelo menos, quando a gente faz uma arquitetura mais bonita, a gente sabe que os mais pobres não vão participar, mas, ao passar, simplesmente, mesmo quem não entra pode ver uma coisa nova. Passa, vê se aquilo é diferente, se espanta e, quem sabe, tem um momento de surpresa. Ele é não vai usufruir nada daquilo, mas tem um momento de prazer." Apontando para a cabeça, Niemeyer explica que só quando o projeto está todo "desenhado aqui" é que senta à prancheta. "Coloco tudo no papel, as linhas, a fachada. Depois de tudo desenhado, dou para o escritório desenvolver. De modo que meus honorários de arquiteto eu divido sempre em dois. Isso me tranqüiliza, porque estou dividindo meu trabalho, e me satisfaz, porque tenho mais tempo para ler, receber os amigos, conversar sobre esse mundo tão perverso em que estamos vivendo. Esses problemas todos que estão na carne, com violência. A gente tem que participar." Niemeyer acaba de escrever dois livros Um, sobre as casas onde morou. Aproveita para falar um pouco de arquitetura, mas aborda essencialmente a vida vivida nessas casas: "Sou Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares. Ribeiro e Soares são nomes portugueses. Almeida, árabe. E Niemeyer, alemão. Sou mestiço de família católica. Morei grande parte da minha vida na rua Ribeiro de Almeida, em Laranjeiras (no Rio), que recebeu esse nome em homenagem a meu avô. Era família antiga, tinha oratório na sala de visitas, o pessoal assistia missa lá em casa mesmo. Quando cheguei a Brasília para fazer a catedral, o arcebispo era meu primo, o que facilitou muito as coisas." Família católica, mas Niemeyer se tornou agnóstico e comunista. E diz a razão: "Ah! O mundo é tão perverso, não há opção." O outro livro trata de reflexões sobre o Brasil, o mundo. Questões que incomodam Niemeyer, e muito. "São três personagens que conversam entre eles. Um padre, que tenta harmonizar as discussões, um português, que é muito malandro e fala muito de Portugal, e um terceiro, comunista, que coloca suas idéias", explica. Na narrativa, Niemeyer discute sua preocupação com as diferenças de classes e faz críticas ao capitalismo. "O capitalismo é miséria e violência, a cidade dividida em duas, pobres e ricos." Para ele, comunismo significa a busca pela justiça social. Lamenta o fim do regime na União Soviética após o que qualifica como "70 anos de glória". E fala do futuro: "A miséria se multiplicando dia a dia. Não vai ser hoje, nem amanhã, mas a maioria vai se impor. A revolução virá." Ao ser indagado se está em busca de um sonho, responde: "Lenin dizia que é preciso sonhar, senão as coisas não acontecem. Por que é sonho? O comunismo pode dar mais dignidade, todos são iguais." Mas ele mesmo mostra que sua visão é mais abrangente: "Tem muita gente que é comunista sem saber. O sujeito que é generoso, que preza os outros, que gosta de ajudar é no fundo um comunista." Niemeyer reconhece que o mundo mudou. "A gente não trata nem da palavra comunismo. É igualdade o que a gente quer, todos com as mesmas possibilidades." Trabalhar em um projeto que represente ao menos um passo para levar cultura aos de menor renda traz um prazer especial a Niemeyer. Ele cita como exemplo a biblioteca em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que ficou pronta no fim de 2004. "Isso me agrada particularmente. Geralmente, quando o governo faz uma obra perto da zona mais pobre, da favela, a tendência é de que a pobreza caracterize a construção. Então, constrói-se uma coisa sem qualidade de arquitetura. E eu pude contestar isso com esse trabalho. Fica em uma zona popular em Caxias. Fiz com o mesmo empenho e a mesma audácia com que faria em Copacabana, por exemplo, contrastando com essa coisa do governo, que faz uma obra junto aos nossos irmãos mais pobres como uma coisa medíocre, sem interesse, como se eles não merecessem." "Lá em Brasília está ocorrendo uma coisa melhor. O primeiro que resolveu fazer uma obra moderna na Cidade-Satélite foi o José Aparecido, com a Casa do Cantador, um projeto que eu desenhei. Lá é um ponto de encontro para os que se interessam pela música. Agora, o Roriz está fazendo o sambódromo. Será um pouco diferente do que fiz no Rio. Será mais ligado ao povo e está sendo construído em Ceilândia. A arquitetura também precisa chegar aos que têm dificuldades." Diz Niemeyer, com simplicidade: "A arquitetura que eu faço não tem nada de especial. Cada arquitetura tem a sua própria arquitetura. Desse modo, a presença do Sussekind (o engenheiro calculista que acompanhou a entrevista) comigo é muito importante. Eu passo para ele os problemas que levanto. E ele faz qualquer coisa. Se eu pedir uma laje sem apoio no ar é capaz de ele fazer. Ele é muito malandro." Niemeyer diz que mais importante do que a arquitetura é a vida. "Alguns acham estranho eu dizer isso, mas é verdade. A arquitetura não muda nada, mas a vida muda, inclusive a arquitetura. A vida é um minuto. O planeta está envelhecendo. Estamos pensando fazer uma exposição lá no museu de Niterói sobre o planeta Terra. O planeta está precisando de ajuda e vamos fazer um alerta sobre os maus tratos do planeta. A gente tem que olhar para o céu e sentir que é pequenino. Quem não sente isso não é modesto o bastante para poder fazer nada de importante." "E a gente tem que ser realista", acrescenta. "Nada é importante. O importante é relativo, são os momentos de prazer, gostar de alguma coisa, ficar abraçado com mulheres. A natureza criou a gente para isso. A gente pode acreditar nas pessoas, achar que todo mundo tem um lado bom. O Lenin dizia que ter 10% de qualidade já é o bastante. É preciso ver a vida com mais simplicidade. Estamos aqui de passagem. Cada um escreve sua história e o tempo apaga. Aí acabou."