Título: O tiro pela culatra de Chirac
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2005, Opinião, p. A13

Mesmo que não tenham usado fogos de artifício, os ideólogos da ala dura do governo Bush foram os que ficaram mais felizes com a crise da União Européia aberta pelos franceses e logo depois ampliada pelos holandeses. Dessa ala fazem parte os seguidores do influente lobby "neocon", obsessivamente empenhado na estratégia de prolongar e aprofundar a dominação unilateral dos Estados Unidos. Segundo seus cálculos, faltam apenas doze anos para que se manifeste abertamente o perigo chinês à segurança nacional americana. E acham que a determinação de "controlar" a firme ascensão da China poderá ser abalada se houver necessidade de lidar com as relutâncias que poderão vir de pelo menos duas potências de segundo escalão: Rússia e Europa. A primeira até lhes deu bem menos trabalho do que previam, surpreendendo pela facilidade com que aceitou todas as humilhantes situações que lhe foram impostas. Mesmo que Putin e seu grupo estejam com muita raiva pelo desfecho do episódio ucraniano, continua impensável para o governo russo qualquer movimento que possa causar suspeita em Washington de um sinal de rebeldia. E os "neocons" nunca tiveram dúvida de que seriam bem superiores as dificuldades com a Europa, mesmo que nos momentos mais decisivos quase sempre tenham podido contar com a ajuda do já tradicional euro-atlantismo britânico, capaz de arrastar outros apoios mais periféricos (peninsulares, no caso do Iraque). Por isso, entre as hipóteses que mais os contraria está a de uma Europa realmente unida, capaz de se comportar com independência nessa trama que há tempos estão armando para fazer frente ao desafio asiático. Interessantíssima ilustração dessa concepção estratégica "neocon" foi o artigo "A ilusão de domar a ascensão chinesa", do colunista mensal do "Washington Post" Robert Kagan, traduzido em "O Estado de S. Paulo" de domingo 22/05. Seus alicerces doutrinários haviam sido explicitados desde setembro de 2000 - um ano antes do atentado às torres gêmeas - no emblemático documento "Rebuilding America's Defenses - Strategy, Forces and Resources for a New Century", elaborado por denso grupo de trabalho reunido pelo "think tank" dos que pretendem que o século XXI também seja americano: o PNAC - "Project for the New American Century" (www.newamericancentury.org). Um sério obstáculo a esse programa de supremacia unilateral poderia vir de uma Europa coesa, mesmo que desarmada em termos estratégicos. E ela também constituiria um grande incentivo à futura desobediência russa. Por isso, dificilmente poderia ter havido melhor presente francês à ala de Donald Rumsfeld do que a "astúcia" do euro-gaullista Jacques Chirac ao insistir em convocar um referendo para ratificar esse intrincado documento de 448 artigos que compõem um tratado, e não uma Constituição. Mas aqui se esbarra evidentemente em séria questão de fundo, pois, por princípio, é incomparavelmente mais democrático chamar o povo às urnas do que delegar a decisão a parlamentos, como preferiram 15 dos 25 países membros. Daí a importância de entender qual é a mescla de visões sobre a Europa que coexiste na União.

Não é razoável colocar um eleitor diante da opção de aprovar ou rejeitar tratado que não é integralmente aceito por nenhum grupo

Em todos os países envolvidos há disputas entre quatro linhas estratégicas. De um lado estão os que querem que o sistema mundial venha a ser multipolar e esperam, portanto, que a UE se contraponha à pretensão dos EUA de transformar seu atual domínio unipolar em futura hegemonia. São considerados irrealistas pelos que preferem rápida adaptação à atual supremacia americana, e assim, de mãos dadas, EUA e UE construam um sistema que também possa ser multipolar, mas bem centrípeto. No meio de campo esperneiam dois agressivos grupos pouco preocupados com as futuras características estruturais do sistema mundial. O que acha o status quo mais favorável para que seu país tire melhor proveito jogando com as diferenças entre europeus e americanos. E o que prefere que sua nação simplesmente recupere a soberania, reduzindo a União a uma sutil confabulação entre os 25 governos. Essas quatro atitudes não correspondem às orientações ideológicas dos grandes partidos políticos, pelo simples motivo de que estas foram determinadas pelas circunstâncias socioeconômicas dos últimos dois séculos, e não pelo contexto geopolítico que emergiu no intervalo entre os dois 9/11: depois da noite berlinense de 9 de novembro 1989, e antes da manhã nova-iorquina de 11 de setembro 2001. Claro, não falta quem se esforce para espremer essas quatro visões em camisas-de-força do tipo "extrema-esquerda e comunista", "liberal", "social-democrata", e "nacionalista", como fez Thomas Ferenczi no jornal "Le Monde" de 3 de junho. Todavia, o que mais se viu nas duas campanhas prévias aos referendos, e ainda mais nas reações posteriores em países vizinhos, foi uma generalizada cizânia sobre a chamada Constituição no interior das cúpulas partidárias de cada uma dessas quatro famílias ideológicas. Cabe perguntar, então, se pode ser razoável colocar o eleitor diante da simples alternativa de aprovar ou rejeitar documento de tão árdua leitura. Principalmente quando se sabe que: 1) são quatro, e não dois, os caminhos propostos para a União Européia; 2) os três primeiros foram precariamente conciliados no texto do tratado; e 3) ele não é integralmente aceito por ninguém. Se por democracia se entende apenas o ato de colocar cédulas nas urnas, então é até possível admitir que o regalo que Chirac ofereceu aos "neocon" tenha sido um preço a pagar por coerência democrática. Mas se democracia for um pouco mais do que isso - se ela exigir que o voto seja precedido de real esclarecimento sobre suas mais prováveis conseqüências - então é bem diferente a moral desta história. Em tais circunstâncias, referendos e plebiscitos populistas só podem causar erosão da democracia representativa. O tiro de Chirac saiu pela culatra por reles politicagem, estimulada pelo indiscutível sucesso popular da oposição franco-alemã à invasão do Iraque, combinado à certeza de que o referendo destroçaria o Partido Socialista.