Título: Quebra de patente pode virar arma
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2005, Brasil, p. A4

Relações externas País estuda usar direitos de propriedade intelectual como retaliação

Vitorioso em ações promovidas na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra subsídios agrícolas dos EUA e União Européia, mas ameaçado de ver as decisões dos árbitros descumpridas pelos perdedores, o governo brasileiro pode aplicar retaliações onde os países ricos podem realmente sofrer prejuízos: nos direitos de propriedade intelectual em mercadorias como remédios e produtos culturais e de entretenimento. A diplomacia ainda tem dúvidas sobre a eficácia dessa estratégia, porém, e apenas informalmente começou a avaliar as conseqüências da possível retirada temporária de patentes ou do pagamento de royalties a produtores americanos, caso os EUA sigam descumprindo as determinações dos árbitros da OMC. O Congresso, hoje, toma um primeiro passo para facilitar esse tipo de medida. Hoje, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) apresentará um projeto de lei que modifica a Lei de Patentes para permitir suspender os direitos de propriedade intelectual de indivíduos ou empresas de países que descumpram determinações da OMC. A suspensão seria temporária, no montante do prejuízo sofrido pelo Brasil com a medida considerada ilegal pela OMC, e apenas se autorizada pela organização. "Do ponto de vista internacional, isso será um acontecimento na relação Norte-Sul: usaremos as regras do jogo para retaliar em matéria de propriedade intelectual", comentou o deputado, que pretende propor o uso da medida para baratear medicamentos de combate à aids. Ontem, em reunião com técnicos do Ministério da Agricultura e representantes da Confederação Nacional da Agricultura e dos produtores de algodão, o coordenador-geral de contenciosos do Itamaraty, Roberto Azevedo, informou que é "uma alternativa" o uso dos direitos de propriedade intelectual como arma de retaliação, no caso dos subsídios dos Estados Unidos para o algodão americano, condenados pela OMC. "Não é uma alternativa óbvia, porque há dificuldades jurídicas não testadas na OMC", disse Azevedo, segundo um dos participantes da reunião. O diplomata enfatizou, ainda, que o governo terá de analisar a "conveniência política" de adotar retaliações cruzadas, e em tema tão sensível como a propriedade intelectual. Pelas regras da OMC, a retaliação deve acontecer no mesmo universo onde houve a violação das regras: se, por exemplo, os EUA tomaram medidas ilegais no comércio de mercadorias, as retaliações seriam nesse tipo de comércio. Se for em serviços, as retaliações seriam sobre serviços. Para fazer a chamada "retaliação cruzada", o país terá de provar que, no caso de algodão, por exemplo, aumentar barreiras para mercadorias americanas não teria eficácia, e poderia ser prejudicial aos consumidores brasileiros. Essa estratégia já foi adotada antes pelo Equador, para obter permissão de retaliações cruzadas contra a União Européia, que perdeu um caso contra regras ilegais no comércio de bananas. No fim dos anos 80, durante a discussão sobre o mecanismo de solução de disputas na OMC, partiu dos EUA a idéia da "retaliação cruzada", sob o argumento de que, ao vencer uma hipotética disputa sobre comércio de serviços contra países em desenvolvimento, como o Brasil, os EUA poderiam preferir fazer retaliações onde fossem mais eficazes - no setor de mercadorias, por exemplo - com imposição de barreiras aos produtos do país condenado pela OMC. Países em desenvolvimento, como Índia e Brasil, eram contrários à idéia, mas a proposta foi aprovada após intervenção do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que incluiu entre os setores passíveis de "retaliação cruzada" aqueles do interesse de países ricos, como o acordo de direitos de propriedade intelectual (Trips, na sigla em inglês). O tema voltou a público, semana passada, em audiência na Câmara, em que o presidente da Associação Brasileira de Produtores de Carne Suína (Abipecs), Pedro Camargo Neto, divulgou estudo sobre o possível uso de Trips para retaliações na OMC. O alvo de Camargo é o caso do algodão, no qual os Estados Unidos, confrontados pelo Brasil, receberam a determinação da OMC para eliminar, até 1º de julho, subsídios ilegais na exportação do produto, e, até 21 de setembro, para retirar os subsídios domésticos ou remover os efeitos danosos deles sobre produtores brasileiros. Os Estados Unidos já afirmaram que cumprirão a determinação da OMC, mas analistas duvidam que o governo Bush consiga aprovar uma lei dessa natureza no Congresso, onde já enfrenta dificuldades em discussões comerciais. Camargo Neto diz ser a retaliação a última alternativa, e quer trazer para a pressão contra o lobby protecionista americano setores que ganham no comércio com o Brasil, como a indústria cinematográfica hollywoodiana, a de informática e a farmacêutica. "Queremos é a decisão cumprida", ressalva. "Retaliar não vai ajudar pagar os custos de produção. O cotonicultor está vendendo sua safra com prejuízo." O Itamaraty prefere não se pronunciar oficialmente. Informa apenas aguardar a data de 1º de julho para verificar a disposição americana de cumprir seus compromissos na OMC. Até hoje, só o Equador foi autorizado pela organização a promover retaliação cruzada, com uso do acordo de Trips, mas o governo equatoriano nunca usou o direito de retaliação. O uso do mecanismo defendido por Camargo Neto traz, porém, alguns "problemas", segundo mostra o estudo dos especialistas Maristela Basso e Edson Beas, apresentado por ele aos deputados. O principal é o risco de contestação judicial da medida na justiça local, ou de conflito com outros acordos sobre direito de propriedade intelectual. É esse tipo de problema que Gabeira pretende eliminar com o projeto de lei. Outro problema é o político: antes mesmo da divulgação, no Brasil, da proposta levada por Camargo Neto à Câmara, o tema repercutiu nos Estados Unidos, onde especialistas ouvidos pelo jornal "Los Angeles Times" previram uma reação agressiva dos EUA caso haja retaliações sobre propriedade intelectual. Um representante da indústria chegou a acusar o Brasil de pretender oficializar a "pirataria de Estado".