Título: Direito reconhecido aos agricultores familiares
Autor: Miguel Rossetto
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2005, Opinião, p. A12

Dar voz aos pequenos produtores nos foros que decidem seus destinos é uma necessidade

No imaginário brasileiro urbano é muito presente a percepção de que o campo é um espaço quase exclusivo da grande propriedade. Se o agronegócio patronal exibe e afirma sua vitalidade no dia-a-dia, notável sobretudo na pauta de exportações, há um segmento que trabalha em silêncio, uma espécie de sujeito oculto deste Brasil rural. Longe das manchetes, a agricultura familiar congrega 4,1 milhões de pequenas propriedades e foi responsável, em 2003, por 38% da produção agropecuária do país, ou 10% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estudo da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Traduzindo-se em números absolutos, uma participação de R$ 156 bilhões. Aos poucos, porém, este agronegócio diferenciado, onde prevalece a interação entre gestão e trabalho e que assenta sua base na família e na comunidade, começa a receber o reconhecimento que o Brasil lhe deve. Exemplo disso é o decreto 5.453, publicado neste mês pelo governo federal. Através dele, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) passa a participar da Câmara de Comércio Exterior (Camex). Até então, tinham assento na Camex os ministérios da Fazenda; Relações Exteriores; Planejamento, Orçamento e Gestão; Casa Civil; Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; e Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A admissão do MDA no ambiente de debates que demarca as linhas da política de comércio internacional do Brasil reafirma a opção do governo Lula de apoio e estímulo à agricultura familiar e aos assentamentos da reforma agrária. Propondo, discutindo e ajudando na implementação de políticas e ações relacionadas ao comércio exterior, o MDA atua na defesa da produção da pequena propriedade, especialmente numa etapa da história das nações em que um simples movimento de imposição ou supressão de barreiras comerciais e tarifárias pode provocar reflexos profundos em setores estratégicos da economia de um país. No Brasil, de um total de 1,8 milhão de produtores de leite, 82% são estabelecimentos familiares. É uma atividade tão importante para o país que, no último ano/safra, recebeu 60% dos créditos para investimento (R$ 1,7 bilhão) destinados pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Hoje, uma das preocupações do MDA está nos subsídios para exportação de leite em pó oferecidos pela União Européia. Os incentivos deste tipo recebidos pelos produtores europeus alcançaram 1,7 bilhão de euros (R$ 6,8 bilhões) no ano passado. Neste ano, o orçamento aprovado para o mesmo fim pela União Européia chegou a 1,2 bilhão de euros (R$ 4,8 bilhões). São iniciativas que, aliadas a uma eventual redução de tarifas para importação, tornam-se capazes de determinar a ruína econômica de populações inteiras.

Setor é responsável por 84% da produção da farinha de mandioca, 67% do feijão, 58% da carne e 52% do leite

A preocupação que o MDA tem em relação aos produtores de leite e derivados estende-se, igualmente, para outras áreas de atuação dos agricultores familiares, entre as quais as lavouras de milho e feijão. Se é fundamental abrir mercados para os produtos agrícolas do Brasil, não menos imprescindível é resguardar a produção nacional, procedimento ainda mais necessário no caso dos pequenos agricultores. Logo, a bandeira do livre comércio não pode ser brandida para extinguir ou fragilizar setores importantes da agricultura nacional e destroçar a economia. Agir no sentido contrário significaria fortalecer uma ameaça que promete danos além das simples cifras da produção primária. Como se sabe, a agricultura familiar funciona como elemento estruturante do tecido social e econômico de boa parte do Brasil interiorano. Sua ausência pode devastar a cultura, fragmentar a família, condenar comunidades à extinção e aguçar o êxodo rural. Mas agora - quando também o tema da soberania alimentar ganha mais centralidade nas discussões - a representação da agricultura familiar na Camex é um direito reconhecido de quem entrega ao mercado brasileiro 84% da farinha de mandioca, 97% do fumo, 67% do feijão, 58% da carne, 52% do leite, 49% do milho, 40% das aves e ovos, 32% da soja e 31% do arroz, entre outros itens. E que merece ser ouvido. Esta importância conferida pelos percentuais tem sido reconhecida nos últimos anos não apenas no discurso, mas nas práticas adotadas pelo governo Lula. Com o combate à fome e à pobreza - tópicos como segurança alimentar - o desenvolvimento rural e a agricultura familiar adquiriram uma relevância internacional que antes não possuíam. Estão, por exemplo, incluídos nos debates da Organização Mundial do Comércio (OMC), da Alca, do Mercosul e da União Européia. Outra evidência deste novo patamar reside na inserção do setor na agenda permanente do Mercosul através da Reunião Especializada de Agricultura Familiar (Reaf). Em 2004, aliás, os Ministérios do Desenvolvimento Agrário e das Relações Exteriores reuniram-se no Itamaraty com movimentos sociais de trabalhadores do campo para debater o ajuste comercial negociado entre o Mercosul e a União Européia. Foi um encontro histórico. Pela primeira vez, dirigentes da Via Campesina - representante de movimentos como dos trabalhadores rurais sem terra, pequenos agricultores, atingidos por barragens, mulheres camponesas e ainda a Comissão Pastoral da Terra (CPT) - foram recebidos oficialmente para examinar uma proposta de acordo internacional. A agricultura familiar, depois de décadas de indiferença, é sujeito e objeto de discussões na Camex, no Mercosul e na OMC. Mas não se trata apenas de uma prerrogativa que se exerce e se esgota dentro de uma esfera da produção nacional. A voz dos pequenos produtores nos foros que podem decidir seu destino, além de direito do setor, é uma necessidade do Brasil.