Título: STF adia julgamento de audiência pública
Autor: Thiago Vitale Jayme
Fonte: Valor Econômico, 21/10/2004, Legislação & Tributos, p. E-1

Um acordo político acertado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso envolvendo a liberação do aborto de fetos anencéfalos - ou seja, sem o cérebro - traiu os próprios magistrados da corte. Depois de quatro horas de debates na tarde de ontem, o julgamento do processo voltou ao ponto inicial. Serão necessários pelo menos mais três rodadas de discussões entre os integrantes do tribunal para solucionar a rumorosa análise da legalidade da interrupção prematura da gravidez de crianças sem cérebro. Por enquanto, a autorização concedida pelo relator do caso, Marco Aurélio de Mello, está suspensa e os abortos estão proibidos. A próxima sessão a discutir o tema poderá definir se o Supremo fará ou não a primeira audiência pública de sua história para trazer o debate à sociedade. O acerto dos ministros foi feito por sugestão do presidente do tribunal, Nelson Jobim. Marco Aurélio havia concedido liminar à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) autorizando o aborto de fetos anencéfalos. No dia 2 de agosto, o magistrado levou o caso ao plenário para julgamento. Na ocasião, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, pediu para se manifestar. Os ministros queriam julgar a liminar antes. Jobim interveio e sugeriu aos ministros o não julgamento da liminar sob compromisso de Fonteles emitir parecer rapidamente. Assim foi feito. O procurador-geral foi veloz mas propôs uma questão de ordem. Argumentou que o dispositivo usado pela CNTS para pedir a autorização do aborto não era o correto. O jurista Luís Roberto Barroso, advogado da instituição, optou por propor uma argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Para Fonteles, esse mecanismo jurídico não é adequado e a discussão do tema estaria prejudicada. A intenção da corte era julgar a questão de ordem na tarde de ontem. Em meio ao debate, o ministro Carlos Britto pediu vista do processo para analisar a divergência técnica proposta por Fonteles. Diante do pedido de vista, o ministro Eros Grau exigiu o julgamento da liminar concedida por Marco Aurélio. Alguns magistrados protestaram, mas assim foi feito. Por sete votos a quatro, o Supremo julgou improcedente a liminar concedida por Marco Aurélio no dia 1º de julho. Os ministros argumentaram que não haveria urgência para justificar a liminar. Cezar Peluso sustentou que uma cautelar só pode ser concedida quando há alta probabilidade de a corte referendar o entendimento do ministro. O caso em questão é controverso demais para ser decidido liminarmente. Significa que, por conta de um acordo dos magistrados, o aborto de fetos anencéfalos ficou liberado por três meses e 20 dias por uma liminar considerada pelo STF como irregular. A decisão, no entanto, não é retroativa. Os abortos realizados no período foram legais. A insegurança jurídica causada pela revogação de uma liminar mantida por quase quatro meses pelo próprio STF irritou alguns ministros. "A liminar está em vigência há quatro meses. Não vejo porque remeter cada caso de aborto ao vai e vem das decisões país afora. Como essa situação foi criada por nós, o melhor é uma decisão política de manter a decisão", protestou o ministro Sepúlveda Pertence. Mas ele, Marco Aurélio, Carlos Britto e Celso de Mello perderam o debate e a liminar foi cassada. Agora, os ministros aguardarão Britto trazer de volta o processo para julgar a questão de ordem suscitada por Fonteles. Se negarem a reclamação do procurador-geral, os ministros votarão o pedido de Marco Aurélio de realizar uma audiência pública para debater o assunto. Caso aprovada, a consulta popular será a primeira da história do STF. Só depois o mérito será analisado pelos ministros e o país saberá se será permitido o aborto ou não. O julgamento de ontem foi dos mais polêmicos do ano. Antigas divergências entre Marco Aurélio e o ministro Joaquim Barbosa vieram à tona. Ao receber uma crítica ácida de Barbosa, Marco Aurélio pediu respeito e avisou que, se o colega quisesse, eles poderiam debater o assunto "não aqui, no tribunal, mas em outro campo".