Título: Biotecnologia ganha respeito e mercado
Autor: Catherine Arnst
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2005, Empresas &, p. B9

Farmacêutica Apesar de ainda ser considerado um negócio de risco, o segmento já criou mais de 230 remédios

Hoje em dia as feridas nos pés são as principais reclamações de Julia Barchitta, 61 anos, presidente do Centro para Desenvolvimento de Carreira & Aprendizagem Experimental (CCDEL) da Wagner College em Nova York. Levando em consideração que ela tem vivido os últimos três anos com um câncer metastático renal, conhecido por ser uma doença de difícil tratamento, esta é sem dúvida uma declaração surpreendente. Até maio de 2004, Barchitta teve a sorte de responder favoravelmente ao Interferon, uma droga eficaz para apenas 10% a 20% dos pacientes. Porém seu organismo tornou-se resistente à droga e os tumores espalharam-se por todo seu corpo. Histórias como a de Barchitta têm convencido muitos médicos de que o tratamento clínico está em vias de atingir seu apogeu. O que não significa que os pacientes serão curados imediatamente - a grande maioria dos doentes continuarão tomando pequenas doses de substâncias químicas, mais conhecidas como pílulas, que representam a Velha Guarda da medicina. Mas os tempos estão mudando. Os últimos 30 anos de descobertas biológicas, o entendimento do genoma humano e a manipulação química não convencional desencadearam uma nova onda de drogas, muitas delas resultantes de reengenharia das proteínas humanas. A biotecnologia finalmente atingiu com sucesso sua maturidade. Essa declaração pode trazer à mente as notícias sensacionalistas da mídia que tantas vezes rondaram a biotecnologia no passado. Porém um crescente número de cientistas e de executivos da indústria declara que o entusiasmo atual se baseia em uma nova realidade: as drogas realmente existem. A partir das técnicas da biotecnologia já foram criados 230 remédios e produtos correspondentes. Só em 2004, a agência reguladora de remédios e alimentos dos Estados Unidos (FDA) aprovou 20 drogas biotecnológicas, algumas delas para tratamento de insônia, esclerose múltipla, dores severas, doenças renais crônicas, incontinência, dores bucais e câncer. O centro de estudos para desenvolvimento de drogas Tufts Center estima que pelo menos 50 das 250 drogas biotecnológicas que se encontram atualmente em fase final de estudos clínicos deverão obter a aprovação da FDA, registrando uma taxa de sucesso quase três vezes superior à da indústria farmacêutica tradicional. Até mesmo os apreensivos investidores em têm razões para estarem otimistas. É bem verdade que os indicadores da indústria registraram performance abaixo do mercado durante 2004, e que poucas entre as 1,5 mil empresas existentes no setor são lucrativas. Mas os medicamentos estão sendo vendidos. A consultoria Ernst & Young estima que nove drogas aprovadas em 2004 deverão gerar um total de receitas de US$ 3 bilhões em 2005. Em 2007, as vendas desses produtos poderão crescer até US$ 8 bilhões. "Eu diria que a indústria como um todo tornar-se-á lucrativa em 2008" declarou Mark Monane, médico-diretor de pesquisa em biotecnologia da consultoria de investimentos Needham & Co. A indústria também está construindo seu próprio sucesso, aplicando lições e testando idéias rápido do que nunca. Há grande expectativa de que o Sutent obtenha a aprovação da FDA no início do ano para uso em pacientes com câncer de estômago resistentes ao medicamento Gleevec - importante descoberta no combate ao câncer que chegou ao mercado há apenas quatro anos. Ainda que tímidos, há sinais de que a tão esperada era da medicina personalizada não esteja assim tão distante. As empresas de biotecnologia têm demonstrado capacidade de descobrir drogas inovadoras, porém não tão capazes de descobrir a quem essas drogas poderão ajudar com maior probabilidade. O índice de respostas aos medicamentos para o câncer, por exemplo, está estagnado no patamar de 20%. Cansada desse baixo desempenho, o setor está se concentrando fortemente no desenvolvimento de testes diagnósticos que combinem um determinado tratamento com o perfil genético de um paciente, dessa forma reduzindo os efeitos colaterais e aumentando sua eficácia. A revolução na medicina induzida pela biotecnologia é na realidade uma evolução, pois mostra claramente a lenta acumulação resultante de décadas de pesquisa. Desde 1973, quando os genes que produzem proteínas humanas utilizáveis foram pela primeira vez produzidos em massa na cultura de células, um grande número de cientistas estava perseguindo o mesmo sonho: criar novas moléculas através da engenharia genética, o que alteraria para sempre o curso da doença humana. Por falta de interesse em tecnologias de sucesso não comprovado, as empresas farmacêuticas tradicionais se esquivaram da biotecnologia por muitos anos. Essa atitude não ajudou em nada as primeiras descobertas da biotecnologia conquistadas nas décadas de 80 e 90, apesar dos muitos reveses sofridos. Atualmente, a "Big Pharma", como é conhecida a grande indústria farmacêutica, está pagando o preço por seu posicionamento de aversão ao risco: as principais empresas possuem poucos produtos promissores em suas linhas de pesquisa e desenvolvimento e a maioria delas está estagnada dentro de um modelo convencional de negócios, altamente dependente dos medicamentos que são campeões de vendas, os chamados "blockbusters". Como resultado, a consultoria Boston Consulting Group estima que as empresas de biotecnologia produziram 67% das drogas em estudos clínicos em 2004, conseguindo suporte financeiro de apenas 3% dos US$ 40 bilhões gastos pela indústria farmacêutica na área de pesquisa & desenvolvimento (P&D). "Foco nas necessidades não atendidas" tem sido o mantra da indústria de biotecnologia. A maioria dessas drogas faz exatamente isso. E como resultado, a estratégia da Genentech foi recompensada: hoje sua valorização no mercado é maior do que a da Merck, terceira maior empresa farmacêutica americana; graças a uma lista de medicamentos que geraram vendas bilionárias. Agora, a Big Pharma quer desesperadamente entrar no jogo. Está se associando às empresas de biotecnologia, depositando confiança nelas, ou tentando copiar o seu sucesso através da ampliação de seus próprios esforços de P&D. Há dois anos, a Novartis transferiu seu departamento de pesquisa da Suíça para Cambridge, , na esperança de que atue como uma empresa de biotecnologia independente. As tentativas da indústria farmacêutica para imitar a biotecnologia - ou se fundir a ela - deverão acelerar os passos da inovação clínica. A seguir foram indicadas três áreas de pesquisa e tratamentos que se beneficiarão com essas mudanças: Câncer - Em nenhuma outra área terapêutica a biotecnologia fez tanta diferença como na oncologia. Os novos medicamentos que atacam seletivamente as células cancerígenas que formam os tumores com danos mínimos aos tecidos saudáveis acarretaram uma mudança no paradigma do tratamento contra o câncer. Os médicos passaram a discutir o câncer como uma doença crônica e tratável. Apenas em 2004, quatro medicamentos seletivos de câncer obtiveram aprovação da FDA. O Avastin, da Genentech, amplia a expectativa de vida dos portadores de câncer de pulmão, de mama e do intestino grosso, sendo a primeira droga anticancerígena a fazer isso. Para o público em geral, no entanto, esse quadro ainda parece triste e sem esperança. Três décadas depois do presidente Nixon ter declarado guerra ao câncer, a doença ainda é a mais letal em pessoas com menos de 85 anos, causando uma em cada quatro mortes de americanos por ano. "No momento há uma linha de tratamentos seletivos vitais sendo desenvolvidos", declara Roy S. Herbst, especialista em câncer de pulmão do M.D. Anderson Cancer Center da Universidade do Texas. "Mas temos que ser realistas. Não se trata de cura. É um ponto de partida." Já os pesquisadores de biotecnologia sentem que estão bem longe do ponto de partida tendo em vista a imensa variedade de tratamentos emergentes de combate ao câncer. Ao contrário das doenças cardiovasculares, onde os pacientes escolhem entre sete estatinas praticamente idênticas para redução de colesterol, as terapias seletivas anticancerígenas se apresentam sob muitas formas. Há medicamentos que agem bloqueando os fatores de crescimento dos tumores, inibindo a formação de vasos sanguíneos e assim privando os tumores de sangue e nutrientes, combinando radioisótopos com proteínas que são "buscadas" pelos tumores e tratamentos que usam vacinas para treinar o sistema imunológico do organismo a atacar as células cancerígenas. Há também uma nova onda de medicamentos múltiplos que devem obter a aprovação da FDA em 2006. O Sutent, que têm mantido Julia Barchitta viva, é um membro dessa classe, conhecida como inibidores da proteína kinase e de ação múltipla. Eles inibem essa proteína (que circula na corrente sanguínea) responsável tanto pelo crescimento do tumor como pela formação de vasos sanguíneos. Redução do tumor não significa sua erradicação. No entanto, os oncologistas têm esperança de que quanto mais terapias seletivas forem desenvolvidas mais coquetéis de medicamentos poderão ser combinados para aumentar a sobrevida dos portadores de câncer. Diagnósticos - O maior problema com a maioria das drogas é que funciona somente para o intervalo de 25% a 60% dos pacientes. A biotecnologia começou a melhorar esse índice. Em janeiro foi lançado o primeiro teste com base no DNA capaz de prever a resposta de uma pessoa a uma variada gama de drogas. Desenvolvido pela Roche Pharmaceuticals e Affymetrix Inc. (AFFX), o dispositivo do tamanho da unha do polegar, chamado de AmpliChip CYP450, detecta aproximadamente 30 variações em dois genes que regulam como o fígado metaboliza medicamentos receitados normalmente, como os antidepressivos, betabloqueadores e analgésicos. Uma única gota de sangue permite ao chip identificar os pacientes que absorvem uma determinada droga rápido demais para causar um efeito positivo e aqueles que a absorvem devagar demais, deixando-os vulneráveis aos efeitos colaterais. Líder em diagnóstico, a Roche espera colocar no mercado até o final do ano um chip DNA similar que será capaz de identificar qualquer um dos 25 diferentes tipos de leucemia, bem como um chip que possa identificar o gene p53, um supressor de tumores que sofre mutações constantes em pacientes com câncer. Esses testes auxiliarão os médicos na descoberta do tratamento mais adequado. Não deveria ser um problema tão terrível. Tantos pacientes como médicos aguardam ansiosamente pela entrega dos tratamentos da biotecnologia concebidos sob medida que transformam a genética de um indivíduo. Mas as técnicas de diagnóstico há muito estão bem atrás dos avanços no desenvolvimento das drogas, em parte porque a biologia da doença é pouco compreendida. Tampouco as empresas tinham interesse em desenvolver testes de diagnóstico: queriam que o maior número possível de pacientes tomasse seus medicamentos a fim de assegurar o máximo de lucros. Porém os graves efeitos colaterais que acarretaram a retirada do mercado do antiinflamatório Vioxx enfatizam os sérios riscos desse tipo de abordagem. A Genentech adotou uma estratégia distinta quando lançou no mercado o Herception para tratamento do câncer de mama em 1998. Foi o primeiro medicamento contra o câncer a ser comercializado simultaneamente com um teste genético capaz de determinar o público-alvo composto por 25% a 30% das vítimas nas quais o Herceptin seria eficaz. Obteve um sucesso estrondoso. Atualmente a Abbott Laboratories está preparando testes semelhantes que possam identificar pacientes com maior índice de resposta ao Iressa e ao Erbitux, drogas eficazes para apenas 10% e 25% dos portadores de câncer, respectivamente. Os pesquisadores de biotecnologia acreditam que mais pacientes poderão ser beneficiados assim que os cientistas conseguirem identificar outras variações genéticas ou protéicas, conhecidas como biomarcadores, ligados a doenças específicas. Alguns estão desenvolvendo testes para prever quem é mais suscetível a uma determinada doença, permitindo dessa forma a ação preventiva. A Myriad Genetics possui no mercado quatro testes de diagnóstico que reconhecem as suscetibilidades genéticas do câncer de mama, de intestino e de pele (melanoma). O aspecto econômico tem incentivado o desenvolvimento dos testes tanto quanto a necessidade médica. Os tratamentos de câncer utilizando a biotecnologia podem custar de US$ 20 mil a US$ 40 mil por mês. Se forem ministrados a uma população maior de pacientes, muitos deles poderão não responder e isso seria calamidade em termos de política pública. Células-tronco - Em 2001, Calvin Miller, morador de Nova Jersey, sofreu cinco infartos em seis semanas. Seu coração estava tão danificado que não tinha força suficiente para desempenhar tarefas simples. Em 2003, enquanto viajava pela Tailândia ouviu falar de um estudo clínico no qual células-tronco eram extraídas da medula óssea dos pacientes e injetadas em seus corações lesionados. Os pesquisadores acreditavam que as células desenvolveriam novos vasos sanguíneos melhorando o bombeamento de sangue para o coração. Miller se inscreveu para participar do estudo. Ficou surpreso com a melhora depois de uma única intervenção. Em janeiro, antes das células-tronco terem sido injetadas, ele subia dois lances de escada. Recentemente conseguiu subir 10 lances. Os cientistas esperam que um dia as células-tronco, próxima fronteira da pesquisa biomédica, tornem possível a regeneração de diferentes tipos de tecido. Ainda que num futuro muito distante, o objetivo é que as células-tronco possam reparar ou substituir órgãos danificados, traumatismos graves na coluna vertebral e articulações deterioradas. Os cientistas ainda têm muito a aprender sobre o funcionamento das células-tronco adultas - se é que elas realmente funcionam. Mas há um progresso. Recentemente, médicos da University of Pittsburgh Medical Center, que trabalharam em conjunto com os pesquisadores da Tailândia no estudo clínico em que Miller participou, receberam autorização da FDA para iniciar um estudo nos Estados Unidos sobre células-tronco injetadas em pacientes que aguardam transplante de coração. No início deste ano, a FDA deu o sinal verde para a Aastrom Biosciences Inc. (ASTM) expandir um estudo que usa células-tronco na reparação de fraturas graves de ossos. Apesar da onda de excitação momentânea causada pelos testes em humanos, há mais perguntas do que respostas sobre as células-tronco adultas. São células menos flexíveis do que as embrionárias que têm a capacidade de se transformar em qualquer outro tecido dos muitos existentes no corpo humano, porém são mais fáceis de controlar. Em virtude disso, os pesquisadores acham pouco provável que as células-tronco adultas sejam um material suficiente para satisfazer as promessas dessa área emergente e muitos contam com as células embrionárias. É importante lembrar que, há 20 anos os cientistas diziam a mesma coisa sobre os avanços da biotecnologia - que pareciam ser um sonho impossível de se realizar. Houve muita especulação e uma série de fracassos no meio do caminho, mas a ciência continuou seguindo em frente. Como os muitos pacientes que foram beneficiados com as novas drogas bem sabem, a medicina seria um negócio infeliz e nada próspero se a biotecnologia não tivesse finalmente feito a sua parte. (Tradução de Graça Bueno)