Título: EUA não deveriam reeleger Bush
Autor: George Soros
Fonte: Valor Econômico, 21/10/2004, Opinião, p. A-11

Nunca me envolvi intensamente em política partidária, mas estes não são tempos normais. O presidente George W. Bush está colocando em risco os EUA e a segurança mundial, ao mesmo tempo em que está comprometendo os valores americanos. Em razão de me opor a Bush, tenho sido demonizado pela campanha pela reeleição do presidente. Em 2000, o presidente Bush concorreu à presidência com base em um programa que prometia uma política externa "humilde". Se reeleito, a doutrina Bush de ação preventiva - e a invasão do Iraque - serão endossadas, e o mundo terá de viver com as conseqüências. Ao repudiar nas urnas as políticas de Bush, os EUA terão uma oportunidade para reconquistar o respeito e o apoio do mundo. Os ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 exigiram uma reação forte. Mas eles também resultaram na suspensão do processo fundamental tão essencial para a democracia - a plena e honesta discussão das questões. Bush calou as críticas, qualificando-as de impatrióticas. Durante 18 meses, após 11 de setembro, ele conseguiu suprimir toda dissenção. Foi assim que ele levou os EUA para o rumo errado. Na realidade, Bush fez o jogo que interessava a Osama bin Laden. A invasão do Afeganistão foi justificada: era lá que Bin Laden vivia e onde a Al Qaeda tinha seus campos de treinamento. A invasão do Iraque não foi justificada. Foi o presente involuntário de Bush a Bin Laden. Imediatamente após o 11 de setembro, houve um efusão espontânea de simpatia mundial em relação aos EUA. Esse impulso deu lugar a um ressentimento generalizado. Há mais pessoas dispostas a arriscar suas vidas para matar americanos do que em 11 de setembro. Bush afirma sempre que os terroristas odeiam os americanos pelo que eles são - um povo amante da liberdade - não pelo que eles fazem. Mas a guerra e a ocupação criaram vítimas inocentes. Nós contamos os sacos de corpos de soldados americanos - mais de mil no Iraque. E o mundo todo também conta os iraquianos mortos diariamente, num total talvez 20 vezes maior. E a tortura de detidos na prisão de Abu Ghraib não foi trabalho de um punhado de "maçãs podres". Foi parte de um sistema para lidar com os prisioneiros colocado em prática pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld. A opinião pública condena os EUA em todo o mundo, e nossas tropas no Iraque pagam o preço. Bush convenceu as pessoas que ele é bom para a segurança americana jogando com os temores gerados pelos ataques em 11 de setembro. Num momento de perigo, as pessoas aglutinam-se em torno da bandeira, e Bush explorou isso estimulando uma sensação de perigo. Sua campanha considera que as pessoas na realidade não se importam com a verdade e que acreditarão em praticamente qualquer coisa, se a mensagem for repetida com suficiente freqüência. Deve haver algo de errado com os americanos, se nos deixarmos lograr. Por exemplo, cerca de 40% dos americanos ainda hoje acreditam que Saddam teve ligações com os ataques em 11 de setembro, embora a comissão oficial de investigações - constituída por Bush e presidida por um republicano - tenha comprovado definitivamente que tal vínculo não existiu. Meu impulso é gritar: "Despertem, americanos. Não vêem que estão sendo iludidos?" A guerra no Iraque foi mal concebida do início ao fim - se é que há um final para ela. Trata-se de uma guerra resultante de uma escolha, e não de necessidade. Além disso, os EUA foram à guerra por justificativas falsas. Armas de destruição em massa não puderam ser encontradas, e o nexo com a Al Qaeda não pôde ser estabelecido. Bush então afirmou que os EUA foram à guerra para libertar o Iraque. Mas democracia não pode ser imposta pela força.

Será que a arrogância texana de Bush o qualifica a permanecer no posto de comandante-em-chefe dos Estados Unidos?

Saddam Hussein era um tirano, e os iraquianos - e o mundo - podem alegrar-se de terem se livrado dele. Mas os EUA tinham uma obrigação de manter a lei e a ordem; em vez disso, permanecemos paralisados, enquanto Bagdá e outra cidades eram saqueadas. Se tivéssemos nos importado com o povo iraquiano, deveria haver mais soldados disponíveis para a ocupação. Nós deveríamos ter dado proteção não apenas ao Ministério do Petróleo, mas também a outros ministérios, museus e hospitais. E o pior é que quando soldados americanos defrontaram-se com resistência, eles empregaram métodos - invadindo residências e maltratando prisioneiros - que criaram animosidade e humilharam a população, gerando ressentimento e raiva. Foram inúmeras as mudanças de posição e os erros do governo Bush. Primeiro, o exército iraquiano foi dissolvido, depois os EUA tentaram reconstituí-lo. Primeiro, os EUA tentaram eliminar os baathistas, depois os americanos recorreram a sua ajuda. Quando a insurgência tornou-se intratável, os EUA instalaram um governo para o Iraque. O homem escolhido para comandá-lo foi um protegido da CIA, alguém com uma reputação ditatorial, muito distante de intenções democráticas. Apesar dos esforços da campanha de Bush em distorcer o noticiário a seu favor, a situação no Iraque é sombria. Boa parte da região ocidental do país foi cedida aos insurgentes, diminuem as perspectivas de realização de eleições livres e justas em janeiro, paira uma ameaça de guerra civil. A guerra de Bush no Iraque causou também incontáveis prejuízos aos EUA, reduzindo seu poder militar e deteriorando o moral das Forças Armadas. Antes da guerra, os EUA podiam projetar uma força esmagadora. Isso acabou. O Afeganistão está escapando de controle. Coréia do Norte, Irã, Paquistão e outros países põem em prática programas nucleares com renovado vigor. O governo Bush pode ser criticado por muitas outras políticas, mas nenhuma delas é tão importante quanto a questão do Iraque. A guerra custou quase US$ 200 bilhões, e seus custos continuarão a crescer, porque entrar no Iraque foi muito mais fácil do que será sair de lá. Ironizando, Bush vem desafiando John Kerry a explicar como ele faria as coisas de outra maneira. Kerry respondeu que teria feito tudo diferente, e que teria melhores condições de nos tirar do Iraque. Mas isso não será fácil também para Kerry, porque os EUA estão atolados nesse pesadelo. Importantes especialistas militares e diplomáticos advertiram desesperadamente Bush para que não invadisse o Iraque. Ele os ignorou. Bush suprimiu o processo crítico, alegando que qualquer crítica ao comandante-em-chefe colocaria as tropas americanas em risco. Mas essa é a guerra de Bush, e ele deveria ser responsabilizado por ela. Os americanos deveriam parar para refletir por um momento e indagar: quem os colocou nessa enrascada? Um momento de reflexão deveria levantar outra questão: será que a arrogância texana de Bush o qualifica a permanecer no posto de comandante-em-chefe dos EUA?