Título: A necessidade de uma Europa coesa
Autor: Philip Stephens
Fonte: Valor Econômico, 13/06/2005, Opinião, p. A11

Bush não aderiu ao multilateralismo, mas até ele acha que europeus devem atuar do mesmo lado

No começo deste ano, o governo de George W. Bush mostrou sinais de estar levando a Europa a sério. Depois do mal-disfarçado desdém do primeiro mandato do presidente, os Estados Unidos concluíram que teriam algo a ganhar com a restauração de um mínimo de civilidade à aliança atlântica. Não exageremos. Bush não se converteu ao afável multilateralismo. As opiniões dos EUA e da Europa sobre a melhor forma de organizar o sistema internacional permanecem, pode-se dizer, a oceanos de distância. O presidente disse, porém, que deseja que a Europa atue, sempre que possível, do mesmo lado. Um realismo relutante semelhante prevaleceu na França de Jacques Chirac e na Alemanha de Schröder. E agora? Meus amigos americanos me dizem que a resposta esmagadora nos EUA à crise atual da Europa é de uma pitada de satisfação. A caixa de entrada do meu correio eletrônico conta a mesma história. Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa dos EUA, estava certo. A Europa travestida de União Européia não é relevante. A velha Europa está morrendo. Os EUA devem confiar no seu melhor amigo, o Reino Unido, e nos seus ainda gratos aliados na Europa Oriental. Será preferível deixar a França e a Alemanha afundarem em seu auto-escavado lamaçal econômico. E, se o euro for pelos ares, bem, isso pode significar mais demanda por dólares. Desta vez ninguém pode culpar Washington de tentar dividir para governar. A administração já teve muitas coisas vagamente amáveis a dizer sobre o agora rejeitado tratado constitucional. Rumsfeld manteve um penoso voto de silêncio durante os referendos realizados na França e na Holanda. Não, as feridas recentes são auto-infligidas. E agora, que fim terão, os americanos poderão perguntar, aquelas pretensões grandiosas de uma Europa equiparando o poder dos EUA em um mundo multipolar? Acontece que o lugar da Europa nessa ordem mundial em acelerada mudança mal figurou nas discussões populares sobre o tratado. Os múltiplos descontentamentos dos eleitores franceses e holandeses não se manifestaram nas misteriosas discussões sobre se os americanos procedem de Marte e os europeus, de Vênus. As lojas do McDonald´s em Paris saíram ilesas e, pelo que pude observar, o Iraque mal recebeu uma menção. Grande parte dos argumentos, no entanto, tem se concentrado, e continuam se concentrando, em torno da amplitude em que a Europa pode estabelecer os termos de seu relacionamento com o resto do mundo. Lamentavelmente, neste contexto o resto do mundo geralmente parece incluir os novos membros da UE da Europa Central e Oriental. Dessa forma, os franceses que votaram "não" se postaram como paladinos da economia de mercado social do pós-guerra no continente contra as devastações causadas pela mão-de-obra barata da Europa Oriental e da concorrência global. Os opositores holandeses do tratado viram na possibilidade do ingresso da Turquia na União uma ameaça aos seus amados valores liberais e seculares. Essa discussão, que gira em torno da forma como a Europa se envolve com o mundo externo, é do tipo que não desaparecerá. Ela abrange todas as incertezas que levaram à desilusão dos eleitores: desde desemprego e sistemas previdenciários em apuros à imigração e coesão cultural. A caricatura familiar divide o continente em dois campos - um, que tenta erguer muros contra os ventos da mudança global, e outro, satisfeito em ver a herança européia ser levada de roldão pelas camisetas chinesas baratas. Essa divisão, por sua vez, mais obscurece do que ilumina. Os europeus não podem parar o mundo e saltar; mas sociedades tão ricas, educadas e tecnologicamente avançadas tampouco são obrigadas a ceder tudo a mercados não sujeitos a controles. A questão é como se adaptar melhor. A resposta não é um modelo social único, mas uma série de escolhas nacionais. Assim como a UE não é a causa do elevado nível de desemprego, também não é a solução.

Funcionários de Washington perceberam que, a despeito de sua satisfação com o espetáculo, não lucrarão com Europa irada e introspectiva

O perigo é que os líderes políticos se esquivem da responsabilidade, tentando sair do mundo. Uma França que há poucos meses promovia a União como uma participante global indispensável agora poderá patrocinar uma Europa voltada para si mesma. Ouço que já começou uma discussão em Paris sobre a possibilidade de fechar a porta aos candidatos dos Bálcãs Ocidentais à admissão na UE. Custo a crer, considerando o grau de culpa da Europa em relação aos horrores perpetrados no começo da década de 1990, que a França agora possa destruir a perspectiva de uma paz permanente nos Estados que se formaram a partir da antiga Iugoslávia. Mas é muito preocupante que o tema tenha sido suscitado. Os compromissos assumidos pela união perante a eventual entrada da Turquia correm o risco de serem empurrados a um ponto ainda mais distante. Acredito que aqui resida a explicação para a reação calculadamente emudecida da administração Bush às dificuldades da França. Qualquer que seja a satisfação particular, a resposta pública da administração tem sido ponderada. Funcionários inteligentes em Washington percebem que os EUA, a despeito de estarem se deliciando com o espetáculo, não lucrarão com uma Europa irada e introspectiva. Pelo contrário: uma Europa coesa continua sendo vital para a promoção do interesse nacional da América. Longe das vistas do público, o relacionamento transatlântico tem funcionado bastante bem. A UE teve uma atuação fundamental na sua ajuda em conduzir a Ucrânia rumo à democracia. Uma discussão irada em torno de venda de armamentos à China foi aplacada. A diplomacia americana nos Bálcãs depende criticamente de a união manter a porta aberta a novos membros. O mesmo se aplica ao que ouvi recentemente de um alto funcionário do governo dos EUA, que definiu como "imperativo estratégico" a garantia de que a Turquia continue sendo uma democracia voltada para o Ocidente. O processo de paz do Oriente Médio requer dinheiro da UE, e a estabilidade no Líbano, cooperação francesa. Washington pode desdenhar as conversações da Europa com o Irã sobre as ambições nucleares daquele país, porém agora o país entende que elas representam um precursor necessário para qualquer ação coerciva. Os líderes da Europa perderam o discurso sobre a ordem histórica dos eventos que levaram à união. No começo era fácil. A UE deu continuidade à reconciliação franco-alemã e serviu como um bastião contra a União Soviética. O propósito estratégico foi reforçado pela segurança econômica que sobreveio com a crescente prosperidade. Os jovens eleitores de hoje esqueceram a II Guerra Mundial; até o Muro de Berlim já é uma lembrança desbotada; e o crescimento econômico já não é obtido sem esforço. Assim, os políticos lutam para refinar a determinação da União. A ampliação foi ato de estadismo, incorporando a paz e a prosperidade na parte oriental do continente e resguardando a segurança do Ocidente. De alguma forma, a realização foi desperdiçada em discussões em torno dos vencimentos dos encanadores poloneses. Eis outra destas ironias dolorosas. Até a única superpotência já começou a entender que a globalização e a convulsão geopolítica que define a nossa era exige parcerias entre países. Há mais justificativas para uma Europa do que em qualquer outra época. Antes, porém, elas precisam ser adequadamente entendidas - e depois explicadas.