Título: Que ciclo é esse?
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2005, Opinião, p. A11

A recuperação da economia brasileira no período pós-eleitoral mostrou que um governo comprometido com a prudência fiscal e a inflação sob controle induz o crescimento. Assim foi que, depois de dois anos de amargar - 2001 com a crise de energia e 2002 com o temor da eleição do presidente Lula -, e um ano para sarar as feridas, em 2004 a economia cresceu robustos 5%. Mas essa recuperação veio marcada por três características enigmáticas à primeira vista. Primeiro, o ciclo de recuperação mostrou-se muito curto ou, pelo menos, truncado. Depois de um ano de retomada, a economia deu sinais de desaceleração em parte devido ao aperto monetário iniciado em junho do ano passado. Digo em parte porque alguns indicadores de atividade (produção de bens de capital e intermediários) estagnaram logo no início do aperto dos juros - sinal de que talvez houvesse outras forças por trás da desaceleração. Seja como for, já em fins de 2004 a economia alcançava níveis recordes de utilização de capacidade, sintoma de que já não havia muito espaço para crescimento da demanda sem pressões inflacionárias. A segunda característica que merece nota é que o investimento reagiu muito mais que o consumo à subida dos juros. Há dois trimestres que o investimento mostra queda enquanto a demanda de bens de consumo durável segue em alta. A demanda de não-duráveis está andando de lado a reboque do crescimento do emprego, mas se ressentindo da estagnação dos salários. Desempenho curioso e indesejado na medida em que o investimento é o que gera aumento da capacidade produtiva e, assim, garante maior expansão sem pressões inflacionárias no futuro. Em terceiro lugar, o ciclo a esta altura apresenta juros reais muito elevados e câmbio apreciado. Juros reais de curtíssimo prazo da ordem de 13% são muito elevados em qualquer lugar do mundo. É interessante se perguntar por que o ciclo apresenta essas características negativas. Isto é, seria melhor se o ciclo se mostrasse mais longo - afinal não há nenhuma crise externa dessa vez para atrapalhar -, que o consumo respondesse mais que o investimento à subida dos juros e que, a essa altura do ciclo, os juros não estivessem tão elevados. O primeiro condicionante desse ciclo foi a falta de sobras de capacidade produtiva da economia brasileira. O uso da capacidade produtiva vem crescendo nos últimos dez anos, tendo saído da casa dos 74% em 1993 para alcançar 84% no ano passado. Ou as empresas encontraram um ambiente crescentemente mais favorável para utilizar mais plenamente a capacidade ou, a cada novo ciclo de expansão (94-97, 99-01 e 03-04), foram usando mais e mais a capacidade existente sem investir o suficiente para manter o mesmo percentual de utilização. O fato é que rapidamente as empresas alcançaram mais um pico de utilização em 2004 e isso não foi o suficiente para que o investimento tivesse crescido a ponto de evitar o estrangulamento.

Investimento não cresceu o suficiente a ponto de evitar estrangulamento, apesar das empresas terem alcançado pico de utilização em 2004

Os investimentos não foram insuficientes devido ao aumento do custo do capital. Nem a TJLP (que ficou parada em 9,75% enquanto a Selic subia de 15% para 19,75%) nem os juros para captação externa cresceram entre 2003 e hoje a ponto de explicar a queda do investimento. O mais provável é que as empresas tenham se convencido de que o Banco Central levaria a taxa de juros até onde fosse necessário para trazer a inflação para a meta e que, a essa taxa, haveria uma queda das vendas que justificava postergar os investimentos. Em que medida alguns pontos da agenda do governo, como na área de energia elétrica e na diplomacia econômica, desencorajaram investimentos, é algo que não se pode dizer por falta de métricas desse efeito. É razoável argumentar que o crescimento do crédito para pessoas físicas em resposta à consignação das prestações na folha de pagamento também explique as características do ciclo. O crédito consignado reduz a propensão a poupar das famílias e torna a demanda de bens duráveis menos sensível à Selic, o que requer um overkill da política monetária, isto é, uma elevação da Selic além daquela requerida para alcançar a meta de inflação se as condições microeconômicas de crédito não tivessem sido alteradas. Esse talvez seja um motivo para que o investimento tenha respondido mais que o consumo à política monetária. O fato das exportações seguirem crescendo a despeito da apreciação do câmbio também pôs lenha na fogueira da demanda, e isso se deu devido ao vigor da recuperação da economia americana, à forte expansão da economia chinesa e à depreciação do dólar. Talvez tenha sido importante também a mudança no comportamento das empresas exportadoras que, devido ao regime de câmbio flutuante e à globalização de suas operações, estejam menos dispostas a redirecionar sua produção do mercado externo para o interno quando esse último cresce mais rápido. Por último, a política fiscal também teve seu papel no ciclo. É verdade que o superávit primário aumentou no governo Lula. O primário tem se mostrado crescente mas, diante da necessidade de elevação dos juros por parte do Banco Central, o governo federal bem poderia estar mais atento às condições de demanda agregada. Há indícios de que o Banco Central cumpriu o seu papel de fazer a inflação voltar a convergir para a meta. Que lições ficam dessa experiência até agora? A mais importante é que a correção de rumos trouxe a economia para seu trilho de crescimento potencial da ordem de 3% a 3,5%, e que para crescer mais que isso é preciso elevar as taxas de poupança e investimento da economia. O ímpeto reformista necessário para produzir esses efeitos no Brasil parece insuficiente. Talvez porque as reformas requeridas - profunda reforma da Previdência e fiscal para elevar a taxa de poupança pública e das relações de trabalho ao lado de maior abertura da economia para aumentar a eficiência produtiva - tenham sido conduzidas por governos social-democratas cujas matizes ideológicas se chocam com elas. Se é verdade que, de um lado, as convicções mudam de acordo com as necessidades, por outro, também parece fato que a ausência de forças liberais retardem o processo.