Título: Argentina derruba leis que anistiaram militares
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2005, Internacional, p. A9

A Suprema Corte argentina considerou ontem inconstitucionais as leis aprovadas na década de 80 que impediram que casos de violação de direitos humanos cometidos durante o regime militar pudessem ser julgados. A anulação das chamadas leis de Obediência Devida e de Ponto Final foi impulsionada pelo presidente argentino, Néstor Kirchner. A decisão representa a maior vitória obtida até agora pelo governo na questão dos direitos humanos. Não se espera turbulência política. A notícia não causou mudanças no mercado. As duas leis foram aprovadas durante o governo do ex-presidente Raúl Alfonsín, sob forte pressão militar, em 1986 e 1987. A lei de Obediência Devida impedia processos contra oficiais subalternos, e a de Ponto Final encerrava o prazo para a abertura de novos processos contra militares. Posteriormente, em 1990, militares condenados em 1985 num julgamento coletivo foram anistiados pelo então presidente Carlos Menem. Apenas os militares envolvidos em seqüestros de bebês durante a ditadura, um crime que ficou de fora do alcance do indulto, continuaram passíveis de punição. Com a decisão da Suprema Corte, grupos de direitos humanos estimam que até 3.000 militares, 300 deles ainda na ativa, podem ser convocados a depor em processos que deverão ser reabertos para investigar casos de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante o regime militar (1976-83). A estimativa do ministro da Defesa, José Pampuro, é mais conservadora: ele acredita que podem ser processados entre 500 e 1.000 militares. De acordo com números oficiais, 13 mil pessoas foram mortas ou desapareceram em consequência da repressão a militantes de esquerda na Argentina. Organizações de direitos humanos dizem que a cifra é de 30 mil. "A Corte Suprema do nosso país emitiu uma decisão que nos devolve a fé na Justiça", comemorou Kirchner, que durante a ditadura militou na Juventude Peronista, uma espécie de braço político dos montoneros, guerrilheiros peronistas ligados à Igreja Católica. A decisão foi elogiada por grupos de defesa dos direitos humanos da Argentina e do exterior e pode beneficiar o presidente nas eleições parlamentares de outubro. O risco de que haja reação militar e consequente instabilidade político-institucional é praticamente nulo, e por isso o mercado ficou indiferente à notícia. A decisão foi emitida pela Suprema Corte ao analisar o caso de um repressor acusado de seqüestrar um casal de militantes de esquerda e de entregar a filha dos dois a uma família de militares. Por 7 votos a 1, o tribunal confirmou uma decisão anterior segundo a qual as leis não tem validade. Os dois instrumentos legais vinham sendo repetidamente questionados em instâncias judiciais inferiores, e em agosto de 2003 o Congresso anulou as leis.