Título: Crise política exige que o PT olhe para dentro
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2005, Opinião, p. A10
O Brasil já sofreu outros abalos sísmicos por denúncias de corrupção, um deles fatal, que resultou no impedimento de um presidente da República, Fernando Collor de Mello. O mais recente, no entanto, traz fartos elementos para análise do sistema político-partidário brasileiro. Talvez a palavra menos forte para caracterizá-lo seja hipócrita: até as pedras sabem que o lodo envolve o esquema de financiamento de campanha; qualquer cidadão, nas ruas, opina que fazer política e ter interesses pessoais são dois lados da mesma moeda. A atual crise expõe a hipocrisia a céu aberto. O depoimento do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à Comissão de Ética da Câmara deve ser visto com muitas reservas, mas sem dúvida leva a profundas reflexões. As ressalvas são as de que, naquele foro, Jefferson era o acusado, e sobre ele pesam acusações de corrupção não esclarecidas. Há, ainda, o porém de que, ao empunhar a metralhadora giratória contra uma boa parte dos deputados, quer passar de réu a acusador para a opinião pública. O deputado conta uma história que não foi provada, mas que não é totalmente inverossímil. Curiosamente, colocou acima de qualquer suspeita a bancada do PT na Câmara, que não se beneficiaria do esquema do "mensalão" por ele denunciado, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que não saberia da suposta compra do apoio de deputados do PL e do PP. Apontou o dedo acusador para o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu; e para o presidente, o secretário-geral e o tesoureiro do PT - pela ordem, José Genoíno, Silvio Pereira e Delúbio Soares. Indicou ainda, como um dos operadores do esquema, o publicitário mineiro Marcos Valério. A última frase foi uma acusação indireta aos que estariam do outro lado do balcão. Jefferson indicou o mapa da mina dos supostos corrompidos - mas, e principalmente, mirou a máquina partidária petista. Essa acusação tem sido freqüentemente feita pela oposição: a direção do PT teria isolado o partido das tentações mundanas, mantendo-o como vestal do Congresso, mas passou a usar as facilidades do poder para cooptar e corromper os corrompíveis e cooptáveis. Se isso for comprovado, a direção petista terá demonstrado seu imenso desprezo pelo Legislativo - que Lula, em uma de suas campanhas, dizia que era composto por "300 picaretas". Os dirigentes, segundo as denúncias, podem ter alimentado a "picaretagem" em favor de seu governo. Por que as denúncias, embora até o momento sem provas, têm algo de verossímil? Sabe-se que o hoje ministro José Dirceu, desde a última derrota de Lula na candidatura à Presidência, em 1998, montou uma estratégia para assumir o controle do partido, que consistia não apenas de impor a maioria sobre a minoria, mas de imobilizar os discordantes. Foi uma operação que, no jargão da esquerda, é chamada de "tomada da máquina partidária". Uma das condições de Lula para concorrer novamente à Presidência era ter o controle sobre os radicais para poder fazer alianças à direita e dinheiro para fazer uma campanha profissional. Dirceu, na presidência do PT, deu essas condições ao hoje presidente Lula. A operação, no entanto, deu ao comando independência em relação ao próprio partido. Genoíno herdou a máquina de Dirceu. Delúbio e Pereira fazem parte dela. Até que as denúncias sejam esclarecidas, pode-se supor que os ex-quadros de esquerda que hoje compõem a direção petista utilizaram a máxima dos antigos partidos comunistas, de que "os meios justificam os fins". Para chegar ao poder, o PT teria aderido ao jogo da hipocrisia de uma forma igualmente hipócrita: algo como o "compro, mas não me vendo" - se isso é possível - ou "não vendo os meus". O coroamento da hipocrisia, no depoimento do petebista, foi o relato da história da contribuição do PT ao PTB para a campanha eleitoral do ano passado, feita em dinheiro vivo, levada pessoalmente à sede do partido por Marcos Valério. Jefferson contou que recebeu um dinheiro sem origem do PT, que posteriormente seria declarado com algum subterfúgio de notas. O PT teria interrompido a ajuda porque a Polícia Federal havia prendido 60 doleiros e os contribuintes não conseguiam trazer o caixa dois para pingar dinheiro vivo no caixa dos aliados. É sabido que isso existe no Brasil desde sempre. Mas esperava-se que, uma vez no poder um partido que empunhou a bandeira da moralidade, isso fosse colocado em questão de outra forma. Não como uma acusação a ele próprio. Talvez Lula possa estar com a razão. A crise é de responsabilidade do PT - ou melhor, do grupo no poder dentro do partido, no qual se apoiou para chegar à Presidência.