Título: O paternalismo dos líderes da UE
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2005, Opinião, p. A11

A democracia está em conflito com o desejo de eficiência na tomada de decisões européias

A rejeição do tratado constitucional pelos eleitores da França e da Holanda dá à União Européia (UE) uma oportunidade de reconsiderar seu futuro. Os atuais governantes deveriam dar-se conta de que cometeram um erro. A esperança deles era por uma UE mais eficiente e mais democrática. Mas há um conflito entre esses dois objetivos. Agora é possível embarcar em uma nova jornada que admita a verdade. Como observa meu colega Peter Norman no capítulo que conclui seu excelente livro sobre o tratado constitucional ("The accidental Constitution: the making of Europe´s constitutional treaty", Eurocomment, Brussels), no encontro de cúpula em Laeken que estabeleceu a convenção em dezembro de 2001, os chefes de governo da UE "decidiram que a União está em uma encruzilhada. Eles acordaram para o fato de que ela precisa tornar-se mais democrática, mais transparente e mais eficiente". Por maior eficiência, os proponentes do tratado - e aqueles que esperavam algo mais radical - defendem três coisas: que mais decisões deveriam ser tomadas pela UE; que maior número dessas decisões deveriam ser tomadas por voto majoritário qualificado; e que as maiorias qualificadas deveriam ser definidas como maioria tanto de Estados como de populações. Essas novas regras também facilitariam a tomada decisões. No todo, o texto acordado criou 26 novas bases legais para ações com base em voto majoritário qualificado. Ele mudou as decisões de unanimidade para voto majoritário qualificado em 17 áreas. Mas isso deixou cerca de 70 áreas condicionadas à unanimidade. Em resposta, observa Norman, "os autores do relatório do parlamento europeu declararam 'lamentável que a oportunidade não tivesse sido aproveitada para fazer mais' no terreno de votação majoritária qualificada". Apesar disso, o tratado constitucional deu à UE uma esfera de ação mais abrangente, mais áreas sujeitas ao voto majoritário qualificado e maior capacidade de tocar decisões. Isso o teria tornado mais "eficiente". Mas, teria isso o tornado mais democrático? Não. Cada transferência de poder de Estados membros para a EU, e cada mudança de unanimidade para voto majoritário qualificado, torna as tomadas de decisões menos democráticas. Nenhuma dose de envolvimento de Parlamentos nacionais em decisões da UE podem compensar. Ao justificar essas palavras, assinalo que muitos membros da elite européia têm uma idéia distorcida de democracia: em países em desenvolvimento que recém conquistaram sua independência, a democracia, muito freqüentemente significava um homem, um voto, uma só vez; analogamente, muitos zelosos europeus vêem a democracia como um homem, um voto e tantas vezes quanto necessárias para obter o resultado correto. Quem decide qual o "resultado correto"? A resposta é: aqueles que compreendem os verdadeiros interesses da Europa. Essa idéia remonta à idéia de Jean-Jacques Rousseau da "vontade geral" como um bem comum objetivo distinto dos interesses ou desejos de indivíduos. Somente uma instituição imparcial poderia, julgava ele, identificar essa vontade. Essa visão, central à idéia francesa de Estado, encontra expressão nos poderes da Comissão Européia (CE). Mas isso é paternalismo, e não democracia. Existe uma quase igualmente equivocada visão de democracia operada como que por uma "máquina de pesar". Seus partidários sugerem que a legitimidade democrática deriva inteiramente de votações majoritárias. Aqueles que assumem esse ponto de vista insistem em que a própria UE pode ser democraticamente legítima desde que seja governada por eleições cobrindo a Europa inteira. Essa é também a perspectiva daqueles que indagam por que admite-se que uma minoria inviabilize a ratificação de um tratado defendido pela maioria. Essa posição é quase tão imperfeita quanto a de Rousseau. Nesta última, a vontade dos "esclarecidos" proporciona a legitimidade. Na primeira, é a vontade de maiorias. Legitimidade democrática, porém, decorre de processos democráticos políticos nos Estados soberanos membros da UE.

Não há uma discussão na Europa que inclua o público em geral; apenas a que absorve uma elite política, burocrática e intelectual

A ratificação do tratado reconhece essa verdade. Mas ela é de aplicabilidade mais ampla. Como ressaltou Amartya Sen, agraciado com o Prêmio Nobel, em artigo no "Financial Times" ("The diverse ancestry of democracy", 12/06/05), a democracia é "governo por discussão". Eleições são apenas parte dessa discussão. Uma discussão que absorve uma elite de interesses, políticos, burocratas e intelectuais efetivamente ocorre em nível europeu. O jornal fórum desses debates é o "Financial Times". Mas não há uma discussão na Europa inteira que inclua o público em geral. Nem poderia haver, numa UE com 460 milhões de pessoas e 25 países divididos por suas histórias, culturas, valores e, acima de tudo, idiomas. A Europa não tem - e, de meu ponto de vista, não pode ter - um processo político comum. A Europa não pode, nessa medida, ser democrática, exceto no sentido distorcido de Rousseau ou em um sentido mecanicista. O que a Europa de fato tem, em vez disso, é uma política de elite. Operando no âmbito desse processo, a elite acorda fórmulas políticas que, acredita, são apropriadas para seus países, mas não ousam vendê-las em casa. Ela então implementa essas políticas, ao mesmo tempo em que atribui a culpa pelas conseqüências a Bruxelas. Isso é não apenas não democrático como também irresponsável. Essa é a abordagem à organização da vida política européia que conheceu seu Waterloo nos plebiscitos. O conflito entre democracia e eficiência é um dilema inevitável na nossa época. Dificuldades similares surgem com quaisquer instituições internacionais que possuam poderes de criar ou fazer valer as leis. Mas a UE levanta a questão mais fortemente porque seus poderes são mais amplos do que os de todas as outras instituições internacionais. O insucesso do tratado é uma oportunidade para reconsiderar essa questão fundamental de duas maneiras. Em primeiro lugar, democracia, corretamente entendida, está em conflito com o desejo de maior eficiência na tomada de decisões européias. Em segundo lugar, maior tomada de decisões em nível europeu pode ser eficiente, mas não conduzirá, necessariamente, a melhores resultados. Em muitas áreas, a Europa obterá melhores resultados caso permita-se que os países decidam por si próprios. Cada país deveria, por exemplo, decidir suas próprias políticas tributárias à luz de seus próprios interesses e valores. O mesmo aplica-se a decisões sobre mercados de trabalho. Se a França desejar até mesmo abrir mão das vantagens da liberalização de seu setor de serviços, assim seja. A própria França pagará a maior parte do preço. O que é necessário é concordância em torno do genuinamente essencial. Fora disso, as questões deveriam ser decididas por cada país ou, se desejarem, grupos de países. A rejeição ao tratado não é um desastre. É um teste de realidade. Se a construção de uma estrutura política integrada para a Europa como um todo resultar em impasse, assim seja. O que necessitamos é de círculos menores e mais tomada de decisões por países membros. Será um processo conturbado, mas é a única base segura para harmonia e progresso na Europa, no longo prazo.