Título: Desequilíbrio virtuoso
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 21/10/2004, Opinião, p. A-11

Quatro trimestres consecutivos de expansão da produção industrial brasileira estão recolocando na ordem do dia o debate sobre as conexões entre nível de atividade, capacidade produtiva e evolução futura da taxa de inflação. Correndo o risco da simplificação, é possível afirmar que economistas de orientação mais ortodoxa acreditam que o funcionamento da economia além de um determinado nível de utilização da capacidade produtiva instalada implica aumento da inflação no período seguinte. Caberia à política econômica controlar a demanda de modo a evitar que o chamado "produto potencial" fosse suplantado, dissolvendo assim riscos de descumprimento das metas de inflação e a conseqüente deterioração do quadro macroeconômico. Outros economistas, mais afeitos à observação do que se passa no mundo real da produção, costumam entender que a superação de certo limite de utilização da capacidade é, juntamente com a confiança no futuro e a disponibilidade de fundos, uma das principais pré-condições requeridas pelos empresários para a tomada de decisão de investir na ampliação dos negócios. Caberia à política econômica sancionar a expansão da demanda de modo a viabilizar o ciclo de investimentos latente. Não bastasse a aridez, esse tema é ainda envolto em certa incompreensão sobre o que são capacidade instalada, graus desejáveis de utilização dessa capacidade e a própria noção de produto potencial. São diversos os conceitos de capacidade produtiva. Primeiro, há a noção de capacidade nominal ou de projeto, definida como a máxima produção que é possível obter de um dado montante de capital fixo operando em condições ótimas (sem paradas imprevistas etc.). Segundo, há a noção de capacidade operacional - a quantidade que efetivamente se espera obter das instalações fabris, em condições usuais de funcionamento. Finalmente, há a noção de capacidade econômica, que é a quantidade de produto que se pode obter em condições de eficiência produtiva, isto é, sem pressionar os custos de produção. Essa última é a noção de capacidade que está relacionada à idéia de produto potencial. Dentre essas três noções, apenas a primeira - a capacidade nominal - é uma grandeza observável, pois é um dado de engenharia, uma especificação do projeto fabril. A capacidade operacional é um dado mais volátil pois, em geral, incorpora algum grau de ajustamento às condições de demanda esperadas pelos empresários. Por exemplo, se a contração da demanda por um certo tempo motivou a suspensão de um turno, a percepção de uso de capacidade acabará tomando por referência o número menor de turnos. Particularmente, a chamada capacidade econômica é extremamente difícil de ser mensurada, pois envolve a contabilidade dos custos de oportunidade. A despeito dessas dificuldades empíricas, estudiosos da economia industrial insistem que, dado um nível esperado de vendas, os empresários fixam a capacidade produtiva visando objetivos não somente de eficiência, mas também de flexibilidade operacional. Por isso, o equipamento de produção é construído em nível superior às expectativas de longo prazo das vendas, levando à criação de reservas de capacidade, isto é, a um certo grau de ociosidade planejada ou estrutural. Por essa razão, a capacidade econômica, aquela que maximiza a eficiência, tende a ser uma faixa de utilização e não um valor único.

A questão relevante, portanto, é saber qual é hoje a espessura do colchão sobre o qual a indústria nacional está deitada

Reservas de capacidade podem funcionar como um colchão amortecedor, possibilitando ao sistema industrial responder sem maiores solavancos aos aumentos do nível de atividade, em especial aqueles que sinalizam uma fase de crescimento mais duradouro da demanda. Isso será tanto mais verdadeiro quanto maior for a flexibilidade operacional das unidades produtivas, isto é, quanto maior for a faixa de utilização da capacidade em que a produção pode ser realizada de forma eficiente. A questão relevante, portanto, é qual o hiato de produto hoje existente na economia brasileira ou, em linguagem menos técnica, qual a espessura do colchão sobre o qual a indústria nacional está deitada. A resposta, certamente, não é fácil por uma punhado de razões. Primeiro, porque o produto potencial, como observado no início, é uma grandeza não observável e não diretamente mensurável. Além de não considerarem a existência de uma faixa de capacidade econômica, os métodos para sua determinação são questionáveis, não somente pela carga de hipóteses que embutem, mas também porque se baseiam em informações empíricas imperfeitas. As sondagens conjunturais, utilizadas para a aproximar respostas ao problema, são pesquisas sabidamente falhas, pois os empresários tendem a basear suas respostas no grau de utilização da capacidade operacional, o que embute, inevitavelmente, um certo ajustamento às condições de demanda que estão enfrentando. Em lugar de medirem propriamente o grau de utilização da capacidade produtiva realmente disponível, essas pesquisas captam as avaliações dos respondentes sobre cumprimento ou não do planejamento da produção realizado para o período. Além disso, o produto potencial expressa uma variável estrutural, o que significa que diferentes ramos de atividade produtiva podem estar em situações completamente distintas. Particularmente relevantes são as diferenças que separam as indústrias de insumos básicos e de bens de capital. De fato, em 138 trimestres (desde 1970) da série de utilização da capacidade mapeada pela pesquisa Sondagem Conjuntural da Fundação Getúlio Vargas, o grau de utilização da capacidade de produção de bens intermediários ficou acima de 80% em 127 trimestres. Já a indústria de bens de capital manteve-se por 85 trimestres abaixo desse nível de utilização. Esses dados sugerem que uma medida agregada de produto potencial pode ser desprovida de sentido prático - impressão reforçada, no caso brasileiro, pelo aumento de capacidade produtiva obtido com relativamente poucos investimentos, durante o último ciclo de expansão (1994-1998), que reflete a maior flexibilidade proporcionada pela tipo de reestruturação empreendida pela indústria brasileira como resposta à liberalização comercial do período. O crescimento econômico de longo prazo é, em si mesmo, um processo desequilibrado. A expansão mais rápida de certos setores cria gargalos que forçam a realização de investimento e a introdução de inovações tecnológicas que, por sua vez, geram novos gargalos e assim sucessivamente. Cabe a política econômica promover as condições necessárias para que o processo transforme-se em um círculo virtuoso de crescimento sustentável.