Título: Chavismo à brasileira
Autor: Almeida,Daniela; Prates, Maria Clara
Fonte: Correio Braziliense, 11/04/2010, Brasil, p. 7

Especialistas afirmam que Programa Nacional de Direitos Humanos do governo federal altera a Constituição e aproxima o sistema político brasileiro do existente na Venezuela e na Bolívia, dando mais força ao Executivo em detrimento dos demais poderes

Privilégio para as minorias em prejuízo da maioria, enfraquecimento do Legislativo, do Judiciário e das Forças Armadas, mais poder ao presidente da República e proposições que ferem a Constituição. Essas são apenas algumas das críticas ao Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) feitas por juristas, advogados constitucionalistas e integrantes do Ministério Público que discutem os pontos polêmicos desse documento, que já teve alguns projetos de leis encaminhados ao Congresso e ameaça com um retrocesso o sistema político brasileiro. A principal crítica feita por especialistas é que o programa abandonou seu objetivo inicial para se transformar em novo projeto de governo, com forte cunho ideológico. Aprovado na íntegra, ele alteraria substancialmente a Constituição, ferindo várias cláusulas pétreas (imutáveis) e transformando o sistema político brasileiro atual em um regime parecido aos modelos de governo de países como Venezuela e Bolívia, de democracias instáveis e vistos com desconfiança pela opinião pública internacional. Isso porque o Executivo ganharia mais poder com prerrogativas que hoje são competências do Legislativo, como a aplicação de referendos e plebiscitos. O documento, um verdadeiro Frankenstein, distorce o programa que deveria ser um roteiro para o desenvolvimento de políticas públicas em prol dos direitos humanos no país iniciativa cobrada pela Organizações das Nações Unidas (ONU). O tamanho do imbróglio ficou evidenciado com o mea-culpa feito esta semana pelo próprio ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que admitiu a correção em pelo menos 28 artigos entre eles a legalização do aborto, a mediação do conflito na ocupação de propriedades e a exibição de símbolos religiosos em locais públicos. Esta última regra chega a ser, no mínimo, equivocada para o país com a maior população católica do planeta e que se orgulha de ter como símbolo nacional o Cristo Redentor, eleito uma das sete novas maravilhas do mundo. Elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH), que tem a frente Vannuchi, o programa é amplo e aborda temas que vão desde o casamento entre homossexuais, reintegração de posse em propriedades privadas, revisão da Lei da Anistia, reforma do Código de Processo Penal, criação de comissão para o monitoramento da imprensa e até tributação. Foi com base nas 512 proposições do projeto, distribuídas em 228 páginas, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, em dezembro, um decreto propondo o apoio e a criação de 27 leis (segundo a SDH, algumas já tramitam no Congresso), para a implantação do programa.

Conteúdo controverso

Devido a seu conteúdo controverso e questionável, a primeira reação negativa ao programa partiu de dentro do próprio governo, com a divulgação da proposta de criação da Comissão da Verdade, responsável por apurar tortura a guerrilheiros no período da ditadura, mas que não prevê a investigação de abusos por parte de militantes de esquerda. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os três comandantes das Forças Armadas reagiram e ameaçaram o presidente Lula com um pedido coletivo de demissão. A comissão seria apenas a ponta do iceberg. Não fosse a tentativa de caça às bruxas, o PNDH, que é, na verdade, uma terceira versão as duas primeiras foram criadas durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) , teria passado despercebido, segundo o advogado constitucionalista Ives Gandra Martins. O programa altera o funcionamento de diversas esferas públicas, o que gerou a reação de diferentes setores da sociedade. No Judiciário, por exemplo, recomenda a aprovação de decretos e sugere que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue improcedente outras matérias. Pede ainda que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) crie parâmetros para fiscalizar a atuação do Judiciário. Isso é uma tolice, um desconhecimento do que seja o Judiciário recomendar ao Supremo que julgue desta ou daquela maneira. Juiz é neutro. O PNDH considera o juiz um servidor público, quando ele é um agente político. Se viesse uma lei estabelecendo essas tolices, ela enfraqueceria o Judiciário, mas estou certo de que a Justiça consideraria inconstitucional a matéria, diz o ex-ministro Carlos Velloso, ex-presidente do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (STF).

Mordaça

Para os veículos de comunicação, muitas vezes criticados pelo próprio presidente Lula por denunciar erros de gestão do governo, o programa é duro. Determina a fiscalização, prevê o pagamento de multas, penalização com o cancelamento de anúncios do governo e até mesmo a cassação de licença pública para emissoras de rádio e de TV, o que configura clara tentativa de intimidar as empresas do setor. O programa avança também sobre temas polêmicos, como o aborto, e discorre, ainda, sobre questões tributárias, com a criação do imposto sobre fortunas. No que se refere a propriedades urbanas e rurais, caso haja invasões, o PNDH determina que o conflito seja resolvido por meio de mediação entre proprietários e invasores, com recurso ao Judiciário apenas em um segundo momento. Na prática, a medida dificultaria o dono do imóvel ou do terreno a reaver o bem em menor tempo. O plano promove o fortalecimento do Estado a título dos direitos humanos, um tema que não se pode contestar. Mas como eles abordam tudo, na prática estão criando um novo modelo de governo, avalia Gandra. Já o doutor em ciência política e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais Malco Camargos contemporiza: É perigoso. Por outro lado, as nossas instituições são mais maduras. O plano erra na forma em como foi conduzido. O Executivo traz o PNDH sem o debate. As estruturas precisam ser repensadas, mas isso em conjunto com a sociedade.