Título: A hegemonia do dólar revisitada
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2005, Opinião, p. A15
A questão vai e vem. Está na mesa há pelo menos três anos, desde que o euro entrou em circulação, em janeiro de 2002. Mas, mesmo antes disso, a questão da longevidade da hegemonia do dólar já era tema de apaixonadas discussões acadêmicas. Com muita razão, portanto, a recente valorização do dólar face ao euro, no rastro do posicionamento de franceses e holandeses, contrários à adoção de uma só Constituição no continente europeu, acendeu mais uma vez a polêmica. O pano de fundo é, como se sabe, o elevado déficit em conta-corrente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos.
No entanto, como tudo no mundo é relativo, ao peso daquele déficit se contrapõe a situação econômica da própria zona do euro, apanhada em uma aparente enrascada que conjuga elementos típicos de estagnação da economia com algumas profundas dúvidas de origem política. Uma reforça a outra. Os dados do primeiro trimestre do ano revelam uma Itália em recessão e uma França que cresceu apenas 0,2% no período. A OCDE já refez suas estimativas para a taxa de crescimento da zona do euro: para este ano, a previsão é de que a economia não cresça mais do que 1,5%, contra a estimativa anterior de 1,9%, enquanto que para 2006 o último dado aponta para 2%, abaixo dos 2,5% imaginados antes. É claro que a roseira foi balançada mesmo pelos referendos da França e da Holanda, agravados esses resultados pelas declarações de expoentes políticos europeus que, em um rasgo de descontrole, chegaram a proclamar a volta de suas antigas moedas. Foi o caso da lira, defendida pelo ministro do Trabalho da Itália. Isso tudo veio mostrar que o projeto de unificação monetária europeu é forte mas nem tanto. No rastro dessas incertezas até pouco tempo insuspeitas, o dólar foi recuperando valor face ao euro, chegando a acumular ganho de mais de 10% no início da semana. Já há quem apregoe no mercado financeiro internacional recuperação ainda mais acentuada do dólar, com perspectiva de que o euro caia para em torno de US$ 1,150 em três meses. Na segunda-feira, estava em torno de US$ 1,203. São movimentos que afetam as moedas fortes e ajudam, obviamente, a reforçar a posição daqueles que defendem a continuidade da hegemonia do dólar, apesar do déficit em conta-corrente e do déficit fiscal dos Estados Unidos. Isso ganha ainda mais sentido para essa corrente quando se considera a decisão tomada pelo governo norte-americano, no sentido de conceder benefício fiscal para as empresas multinacionais que repatriarem dinheiro que têm aplicado no exterior. Há estimativas de que o incentivo traga de volta aos Estados Unidos cerca de US$ 100 bilhões até o final deste ano, a maior parte disso convertida a partir de aplicações no exterior feitas em euro. Se confirmado, ajudaria a reforçar o valor do dólar.
No passo em que vai a Europa, é de se imaginar que a moeda norte-americana ainda tem fôlego para manter-se hegemônica por bom tempo
O assunto, no entanto, não deve morrer no meio acadêmico. Pelo contrário, as opiniões tendem a se consolidar em clima de acentuada divergência. Recentemente, o economista norte-americano Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, escreveu um artigo no qual faz um histórico das duas principais moedas que até aqui detiveram posição hegemônica no mercado financeiro internacional em momentos distintos: a libra esterlina e o dólar norte-americano. O título é nessa linha. "Sterling's Past, Dollar's Future: Historical Perspectives on Reserves Currency Competition" ("O Passado da Libra Esterlina, o Futuro do Dólar: Perspectivas Históricas da Competição entre Moedas de Reserva"). A posição de Eichengreen é conhecida e ele a reforça nesse paper. Não concorda, por exemplo, com a idéia de que não pode existir mais de uma moeda forte competindo pela predominância na aplicação das reservas internacionais dos BCs. A tese de que a tendência, no mundo, é de que só uma moeda vingue como predominante (em termos de comércio, de transações financeiras e como depósitos bancários nos bancos internacionais) é defendida arduamente por alguns economistas, mas Eichengreen refuta essa posição sob a alegação de que os bancos centrais tendem a optar pela moeda mais conveniente em termos de remuneração, risco e liquidez. Duas ou mais moedas fortes podem competir por isso, acredita. Segundo, acha que apesar da pujança da economia dos Estados Unidos, não se deve menosprezar o tamanho de sua dívida com o resto do mundo, equivalente a 25% do tamanho do PIB norte-americano. "Nunca antes se viu uma moeda de reserva representar um país com tanta dívida", nota. A menos que o governo dos Estados Unidos tome jeito - com corte nos déficits e redução do endividamento, condições que considera necessárias para a continuidade do poder do dólar -, a tendência, diz Eichengreen, seria de convivência entre duas moedas de reserva no mundo, com o euro dividindo espaço com o dólar. O iene, que em meados da década de 80 era saudado para forte candidato a moeda de reserva dos bancos centrais, continua sofrendo as mazelas da economia japonesa que há mais de dez anos não sai do lugar. Fazendo coro às avaliações um tanto precipitadas, Eichengreen chega a prognosticar que o renminbi chinês tem condições de ocupar um importante espaço como moeda de reserva internacional, desde que a China consiga resolver seus problemas internos. Essa perspectiva, conforme ele mesmo coloca, seria algo para o longo prazo, dentro de 40 ou 50 anos. A tabela dá uma mostra do peso que ainda tem o dólar como moeda de reserva para os bancos centrais do mundo. No passo em que vai a Europa, é de se imaginar que a moeda norte-americana ainda tem muito fôlego para manter a hegemonia ainda por bom tempo.