Título: O Judiciário e as decisões administrativas
Autor: Aristides Junqueira Alvarenga
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2005, Legislação & Tributos, p. E2

Um juiz federal da seção judiciária de Brasília concedeu uma medida liminar, de índole cautelar, em uma ação ajuizada pela empresa Nestlé contra uma decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para suspender, provisoriamente, a obrigação de fazer imposta à empresa, autora da ação. O fato motivou algumas manifestações nos meios de comunicação social, em especial no editorial do jornal "O Estado de S. Paulo" de 6 de junho, que critica não só o próprio ajuizamento da ação judicial mas também o fato de a decisão liminar ter sido proferida por um juiz singular, de primeiro grau, em contraposição a uma decisão colegiada do Cade. A liberdade de manifestação de pensamento e a liberdade de comunicação, independentemente de censura, são garantias expressas na Constituição Federal (artigo 5º, incisos IV e IX) e constituem fundamento do regime democrático. Mas outras garantias há que também são esteios da democracia. Dentre essas, deve ser posta em destaque, aqui, a garantia do livre acesso ao Poder Judiciário, assim grafada no texto constitucional: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (artigo 5º, inciso XXXV). Eis aí o princípio da proteção judiciária, também conhecido, doutrinariamente, como princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que, no dizer de José Afonso da Silva, é a principal garantia dos direitos subjetivos, inclusive de pessoas jurídicas, e se fundamenta no princípio da separação dos poderes, reconhecido pela doutrina como a garantia das garantias constitucionais. (Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, São Paulo, 19ª edição). Segundo esse eminente constitucionalista, a primeira garantia que o texto do inciso XXXV da Constituição revela é a de que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição. Assim sendo, quando a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, que transformou o Cade em autarquia, diz, em seu artigo 3º, que é ele órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional, há de se entender que se trata de órgão que não exerce jurisdição, no sentido técnico-jurídico, pois o monopólio do exercício desta é do Poder Judiciário.

Nenhum órgão de índole administrativa profere decisão jurisdicional, já que esta é monopólio do Poder Judiciário

O mesmo se diga relativamente ao Tribunal de Contas da União (TCU) e a todos os órgãos de todos os poderes da União que tenham índole administrativa. Nenhum deles profere decisão jurisdicional, já que esta é monopólio do Poder Judiciário, que não pode ser quebrado sequer pelo órgão destinado a combater condutas monopólicas. Por isso, as decisões deles emanada estão sujeitas ao controle do Judiciário sempre que haja alegação de que elas causaram lesão ou ameaça a direito. Até mesmo quando se trata de uma decisão do Congresso Nacional em um processo de impeachment do presidente da República o acesso ao Poder Judiciário deve ser admitido, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, como já proclamou o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.689, que teve como relator o ministro Carlos Velloso, em 16 de dezembro de 1993. Por outro lado, a circunstância de uma decisão de um órgão administrativo colegiado ter sido suspensa por um ato de apenas um juiz é absolutamente regular e não deve causar perplexidade, tendo em vista a possibilidade de ser tal decisão reformada por órgãos colegiados do próprio Poder Judiciário, por força do duplo grau de jurisdição. O mais importante, em suma, é salientar que o fato de alguma pessoa, natural ou jurídica, não se conformar com uma decisão de um órgão administrativo de qualquer dos poderes e, conseqüentemente, bater às portas do Poder Judiciário não pode ser motivo de reprimenda ou de censura. Ao contrário, há de merecer aplausos de todos quantos crêem, firmemente, que a proteção dos direitos individuais e coletivos, a cargo do Poder Judiciário, é pilar indispensável à constância do regime democrático. Só em tempos ditatoriais se encontram normas vedantes de acesso ao Poder Judiciário. A vigilância há de ser constante para que esses tempos não voltem mais.