Título: Sentido e antídotos para a atual crise (2)
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 20/06/2005, Brasil, p. A6

A enorme parcela de culpa do governo Lula na criação da atual crise foi amplamente discutida pela imprensa na última semana, inclusive em meu primeiro artigo desta série. A maioria das análises, contudo, não responde a seguinte pergunta: tais episódios derivam apenas dos erros da gestão petista? Com certeza, sua forma de manifestação ganha contornos singulares vinculados à inconsistência da presente coalizão governante. Mas, aos muitos que ficaram chocados especialmente com a possível existência do mensalão, é necessário ressaltar que o fenômeno, afora sua peculiar denominação, refere-se a males vistos antes e capazes de se repetir no futuro. Para ser mais claro, trata-se da existência de três graves problemas do sistema político brasileiro: o uso desmesurado de cargos públicos e de verbas de estatais como alicerce das relações entre o Executivo e o Legislativo (1), o troca-troca partidário como veículo para negociar a obtenção de apoios ao governo (2), e, o mais importante, as falhas vinculadas ao financiamento de campanha, que afetam não só o elevado custo das eleições parlamentares no Brasil, como também possibilitam fazer "caixa" para comprar políticos (3). São estas questões que estão na base do suposto mensalão, e elas também apareceram em escândalos de outros governos - como na aventada compra de votos para aprovar a reeleição, durante o governo FHC, e na formação do esquema PC, no período Collor. A utilização massiva dos cargos de livre nomeação e da estrutura das estatais para montar a base governista no Congresso aconteceu em todos os últimos governos democráticos. Ainda assim, três fatores contribuíram para minorar tal problema: a criação e fortalecimento de determinadas carreiras de Estado, as privatizações e o maior controle de processos licitatórios, seja pela via do governo eletrônico, seja pelo reforço dos controles institucionais e sociais sobre o Poder Público. Quando havia as empresas estatais de telecomunicações, elas constituíam um instrumento muitas vezes maior do que o atual em termos de distribuição de cargos e de recursos para financiar campanhas. A Lei de Licitações tem alguns problemas, mas a realidade legal anterior era feita sob medida para o jogo das empreiteiras - as quais, aliás, vêm diminuindo seu poder de "privatizar" o Estado. Apesar dos avanços, o modelo vigente de administração pública é a maior origem dos problemas políticos brasileiros. Reformá-lo, portanto, constitui a principal forma de aperfeiçoamento de nosso sistema político. Para tanto, é fundamental, em primeiro lugar, reduzir e reorientar a distribuição dos cargos comissionados do Poder Executivo. Poderíamos cortar dois terços deles, e manter o outro terço para dois tipos de ocupantes: de um lado, os escolhidos pelo presidente para responder politicamente aos partidos e para resguardar os princípios programáticos aprovados pelas urnas, e, de outro, aqueles nomeados para exercer funções técnicas vinculadas a um saber que agregaria maior eficiência à máquina pública. Neste segundo caso, estão acadêmicos, profissionais vinculados à sociedade civil e pessoas oriundas do setor privado, as quais, num contingente bem equilibrado, poderiam trazer novidades gerenciais que seriam adaptadas às especificidades do Estado. Em ambos os tipos de indicação, ressalte-se, o currículo deve ser a variável-chave na definição dos escolhidos.

As diretorias das estatais são as jóias da coroa

De todo modo, o sucesso desta fórmula depende da contínua profissionalização da burocracia pública. Muitos cargos importantes já são ocupados, hoje, por funcionários concursados, e eles têm tido um papel essencial para ajudar os governantes eleitos e, ao mesmo tempo, para garantir a necessária estabilidade de políticas estatais ante as mudanças de governo. Falta-nos, no entanto, um número suficiente de burocratas com bom nível técnico em certas áreas, bem como é preciso realizar treinamento continuado das carreiras de Estado, incentivando o conhecimento de experiências inovadoras de gestão realizadas no setor público e nas empresas. As formas de controle e fiscalização da burocracia precisam, ademais, ser aprimoradas. Isso pode ser obtido, por exemplo, com o aumento do número de postos de alto escalão que devem passar por sabatina congressual, além do estabelecimento de critérios mais claros de desempenho e responsabilização para os que ocupam funções com provimento político. Não se pode esquecer, por fim, que nesta reforma é preciso redefinir o conceito de cargo em comissão - os chamados DAS -, pois muitas destes postos não têm uma finalidade vinculada à ocupação de uma função especial dentro do organograma estatal. Trata-se, em tais casos, de um mecanismo espúrio para elevar a remuneração do funcionalismo. Só que o uso de cargos para obter apoio parlamentar não se restringe à seara da administração direta. As "jóias da coroa" ainda são as estatais. Nelas, a nomeação garante, geralmente, melhores salários, e os recursos à disposição também são maiores. Algumas deveriam ser privatizadas, em parte ou no todo. Nas outras, a escolha de manter o controle direto nas mãos do Estado passa, necessariamente, pela profissionalização do alto escalão e mesmo dos estratos administrativos médios, igualmente utilizados para barganha política e outras coisas mais graves. Na hora em que houver a diminuição dos cargos comissionados e a profissionalização da administração pública, os "Robertos Jeffersons" da política serão mais raros. É claro que não teremos mais o show de interpretação - e desfaçatez - da última terça. Mas o enredo da história do povo brasileiro terá um final bem mais feliz do que o atual.