Título: Nordeste poderá ser solução do Brasil
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 20/06/2005, Opinião, p. A15

Penso o Nordeste não como região de expulsão, ou região-problema. Em futuro próximo, poderá ser região-solução, repetindo a contribuição que o Centro-Oeste deu ao país desde a fundação de Brasília. A nova capital permitiu a pinça que ocupou em 20 anos o eixo Campo Grande-Acre e Campo Grande-Belém. Criou uma rede de cidades (20 têm 100 mil habitantes ou mais). Engendrou a economia de grãos, fibras e carne, que "segurou", com seu crescimento, o medíocre desempenho brasileiro das últimas duas décadas. O Nordeste poderá fazer o mesmo nos próximos anos. A região já deixou de ser rural. Tem algumas metrópoles, um punhado de cidades médias e uma legião de vilas e grotões. A estratégia de desenvolvimento tem que pensar a conectividade desta rede e planejá-la em uma visão integrada. É fundamental o apoio às micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) em seus arranjos produtivos locais (APLs) e cadeias produtivas. Alguns fenômenos já existentes são convincentes das potencialidades dessas novas formas de cooperação entre produtores. Em São Bento (PB) há um APL vocacionado para a produção de redes de dormir. Em Toritama, Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru, 12 mil empresas - apenas 9% formais - faturam cerca de US$ 1 bilhão ao ano. Em 2005 deverão investir R$ 500 milhões. Calçados no Ceará formam um pólo. Núcleos de confecções pontilham as cidades da região. A economia do camarão tende a se converter num sistema integrado. Em múltiplos pontos de sua rede urbana, a partir de suas universidades, surgirá um sistema de produção de tecnologia de ponta. Veja-se o sucesso do Porto Digital de Recife. Nele localiza-se um arranjo cheio de futuro, onde a informática dá sustentação a mais de cem empresas de criação de sistemas. O turismo deve ser pensado em conjunto, por cidade ou micro-região; a conectividade das cidades amplia sua massa crítica de potencialidade. O turismo de sol e mar pode combinar-se com visita às pinturas rupestres da Serra da Capivara. O turista pode divertir-se no Carnaval de Salvador, no frevo de Olinda e na Festa de São João de Campina Grande. Lençóis Maranhenses pode ser o ponto final de um roteiro que começa no sul da Bahia. No Nordeste, a petroquímica é sólida. Estão anunciadas fábricas de PTA e PET, e em disputa a localização de uma nova fábrica de poliéster. A Oxiteno irá localizar outra planta em Camaçari. A combinação de fibras naturais e químicas reforça a vocação têxtil regional. A indústria pesada deve prosseguir sua expansão: uma nova refinaria, associando a Petrobras à Pedevesa, produzirá mais 200 mil barris. A siderurgia no Maranhão e Ceará; a mineração de fosfato, urânio, gesso, cromo e sal são relevantes. Na Bahia, entre Mansidão e Cocos, a soja cresce 12% ao ano: foram produzidos, na safra de 2004/5, 4,8 milhões de toneladas de grãos, café e frutas. No Piauí e Maranhão, a produção de soja cresce 40% ao ano, apesar das deficiências logísticas. O dinamismo do arco atraiu russos e argentinos para plantar algodão. Um grupo francês projeta prensar óleos vegetais. A China está ávida pela soja da região. É sintomática a competição pela licença de instalação de um terminal de grãos para 12 milhões de toneladas, em Itaqui.

Região possui produção diversificada mas precisa melhorar infra-estrutura de transporte e abastecimento de água para indústrias

A pujança do Nordeste depende de projetos estruturantes que articulem ferrovias com os três portos atlânticos profundos (Itaqui, Pecem, e Suape). A Transnordestina, como projeto - a partir de antigas linhas pouco operacionais - está equacionada. É altamente rentável a partir de 8 milhões de toneladas de soja. Ao longo de três anos exigirá investimentos de R$ 4,5 bilhões (10% capital privado e 90% apoio do BNDES e do FDNE). A ferrovia Norte-Sul é um investimento de US$ 1,8 bilhões, reservado desde 1997 a um "mercurial" PPP. Na ocasião, a coreana Hyundai manifestou interesse, e falou-se de um duto de fibras óticas ao longo do traçado. Com recursos orçamentários, foi construído o trecho de Marabá (PA) a Estreito (MA). Falta ir até Senador Canedo (GO). A Norte-Sul, com novos 665 km, reduzirá o frete em 40 %. A região dispõe da calha do São Francisco, cujo potencial hidrelétrico está esgotado. Seu potencial logístico exige recuperar a navegabilidade do médio São Francisco. É projeto-chave estruturante a transposição de águas para as bacias intermitentes. Sugerido no II Império, anunciado pelo general Figueiredo e recentemente por FHC, exigirá menos de R$ 5 bilhões em três anos. O calcanhar de Aquiles do Nordeste está no suprimento de águas para a rede urbana, novas indústrias e, obviamente, para a agricultura. Aqui reside a principal justificativa do projeto de integração das bacias ao Rio São Francisco. Deverão ser recursos orçamentários. Terá início com a engenharia militar construindo 8 km dos canais de alimentação, a partir de Floresta e Cabrobó (PE). A excelência do Instituto Militar de Engenharia garante a qualidade. Depois, serão licitados 14 lotes. Em conjunto, o eixo Norte (402 km) utilizará as calhas dos rios Brígida, Apodi, Jaguaribe, Salgado, Peixe, Piranhas-Açu. Serão 26 pequenos e grandes açudes interligados. No eixo Leste, um canal de 220 km desembocará na calha do Paraíba, conectando dois açudes grandes e nove pequenos. A transposição de 1% de águas do Velho Chico, variando até 4,5 % (nas cheias de Sobradinho) fornecerá boa água a 10 milhões de famílias e resolver questões de abastecimento de cidades como Fortaleza, Caruaru, Mossoró e Campina Grande. O significado profundo do arco é a metamorfose do semi-árido e da costa superpovoada nordestina em "produtora de grãos". Certamente, outras infra-estruturas são importantes (melhor capilaridade rodoviária, uma base pesqueira em Cabedelo, o aperfeiçoamento de um porto especializado em sal, como Areia Branca). Depende dos projetos estruturantes. Ignácio Rangel anteviu esta metamorfose, sustentando que a oferta de grãos baratos e cadeias protéicas afastariam definitivamente a fome. Ela somente subsistirá pela ação dos homens com a manutenção de uma economia cruel. Sem fome, com um povo criativo, com sol 310 dias por ano e um clima favorável, o Nordeste se converterá numa "Califórnia" às margens do Atlântico Sul.