Título: FMI recomenda critério nos gastos
Autor: Tatiana Bautzer
Fonte: Valor Econômico, 20/06/2005, Finanças, p. C8

Investimento Público Fundo defende filtros mais rígidos antes de liberar recursos a projetos

A melhor maneira de evitar "elefantes brancos" que desperdiçam dinheiro público em infra-estrutura é criar um padrão mínimo, sem o qual nenhum projeto sai do papel. Também é útil comparar projetos em diferentes setores. Esses filtros eliminam empreendimentos fadados ao prejuízo com objetivo puramente político, acredita a diretora do Departamento de Assuntos Fiscais do FMI. Teresa Ter-Minassian é contra a excessiva tomada de risco pelo governo em parcerias com o setor privado. Ter-Minassian coordenou o projeto piloto sobre investimentos públicos criado pelo FMI a pedido do Brasil, do qual participaram também Chile, Colômbia, Índia, Peru, Jordânia, Gana e Etiópia. Num "paper" de 50 páginas com os resultados, o departamento diz que as parcerias com o setor privado não são uma "panacéia" para investir e ressalta a necessidade de explicitar nas contas públicas o risco total assumido pelo governo. O FMI critica o que está sendo adotado pela Europa para a contabilidade das parcerias. Italiana, fluente em cinco línguas, a diretora do Departamento de Assuntos Fiscais conhece bem a América Latina. Foi vice-diretora do Departamento do Hemisfério Ocidental, responsável pelo Brasil e Argentina, a partir de 1998. Em meio à euforia dos mercados, Ter-Minassian foi uma das primeiras e mais enfáticas críticas da falta de ajuste fiscal na Argentina durante a fase da âncora cambial. A diretora só concordou em falar depois da aprovação pela diretoria do FMI, no fim de maio, das conclusões do projeto piloto. A seguir, os principais trechos da entrevista da diretora, concedida com integrantes do departamento que participaram do estudo. Valor: Qual foi a conclusão do projeto piloto? Muitos pensavam numa solução mágica contra as restrições orçamentárias... Teresa Ter-Minassian: Desde o início acreditávamos que essa visão não era apropriada, não há como resolver o problema da falta de investimento público simplesmente com mudanças contábeis, ou por uma mudança de meta no orçamento, ao invés de um equilíbrio real. Acho que hoje há um acordo no nível dos ministros de finanças de que a questão não é contábil. Em vários países houve uma redução do investimento público, que criou alguns gargalos de infra-estrutura. É difícil estimar o efeito do investimento público no crescimento econômico. Mas de qualquer forma há gargalos e a necessidade de direcionar recursos para solucioná-los, seja usando parcerias entre o governo e o setor privado, seja melhorando o clima para investir. Também há a alternativa de se criar mais espaço no orçamento para investimento redirecionando as prioridades orçamentárias. Mas uma conclusão mais inesperada é a de que há um espaço importante para melhorar a qualidade do investimento público com um melhor critério na seleção, avaliação e prioridade dos projetos. Mesmo em países como o Peru, por exemplo, onde há uma tradição de avaliação do investimento, poderia haver melhor definição das prioridades. Acreditamos que o mesmo volume de recursos poderia gerar melhor resultado na melhora da infra-estrutura. Um exemplo é recuperar a infra-estrutura existente ao invés de criar novos projetos. Tentamos expor essas conclusões no paper e no seminário que fizemos no Brasil há algumas semanas. Valor: O estudo menciona que a rentabilidade de muitos projetos cai durante a implantação. Por quê? Ter-Minassian: Acho que é uma combinação de vários fatores. Primeiro, há um excesso de otimismo nas premissas iniciais sobre o ambiente macroeconômico, particularmente na América Latina há grande volatilidade do ambiente econômico. Você pode assumir uma taxa de crescimento constante que não se realiza quando o país é atingido por um choque externo, por exemplo; ou no caso de um financiamento em moeda estrangeira, a taxa de câmbio não corresponde ao que era esperado. Esses são apenas alguns exemplos, mas também há custos de construção e manutenção subestimados. Em alguns casos, ocorre uma superpopulação de projetos: depois que o projeto é iniciado surgem outros cinco ou seis na mesma área. Há ainda interrupção de obras, o que eleva os custos. Existe também o fator político, em que os políticos gostam de receber os louros pelas obras, e tendem a anunciar novos investimentos ao invés de terminar o que já está em andamento. Um grande problema, na minha opinião, é a análise insuficiente sobre as sinergias entre projetos em diferentes setores. Um dos países que melhor resolveu a questão é o Chile, que tem uma agência que avalia todos os investimentos do governo em diversos setores, e compara as maneiras alternativas de realizá-los. Isso ajuda a olhar o conjunto e ser mais eficiente na solução dos gargalos de infra-estrutura. Valor: O que pode melhorar no caso do Brasil? Ter-Minassian: O Brasil tem uma longa tradição de avaliação dos projetos, embora essa capacidade tenha se deteriorado nos últimos anos como resultado das emergências econômicas pela qual passou o país, e também pelo fato de os investimentos terem sido restritos, devido à combinação de restrição fiscal e rigidez orçamentária. Nossos colegas do Banco Mundial também acreditam que em alguns setores, como no de transportes, um pouco da capacidade institucional foi desmantelada. No Ministério do Planejamento, houve uma concentração da análise nas prioridades orçamentárias de curto prazo e menos na avaliação de investimentos. Embora o Plano Plurianual (PPA) dê ênfase a alguns projetos estratégicos, o mecanismo geral de avaliação de projetos sofreu um pouco com as emergências econômicas dos anos 90. Além disso, o Brasil nunca teve, como no Chile, uma avaliação comparativa entre setores com base num modelo econômico de custo/benefício. Nesse sentido, foi interessante ver o tipo de análise pela qual todo projeto tem de passar no Chile. O mecanismo funciona como um filtro, excluindo os que não tenham uma taxa de retorno mínima. Valor: Um dos maiores problemas do investimento público é a pressão política, seja para investimentos num setor ou região. Como uma agência resolve essa questão? Ter-Minassian: No caso do Chile, o uso do modelo não quer dizer que só se escolhe os projetos com a taxa de retorno mais alta. Mas a análise do custo/benefício age como um filtro. As prioridades políticas desempenham um papel depois desse filtro, no momento de escolher entre os projetos. Acho que em última análise as pressões políticas são legítimas, afinal um governo é eleito para fazer escolhas. No Chile a prioridade tem sido para a modernização da Justiça, que está recebendo mais recursos do orçamento, e isso não é um problema. Mas se é um projeto que beneficia um político específico, isso é outra coisa, mas aí há o mecanismo de avaliação que assegura que você não faça "elefantes brancos". Valor: Já existe uma avaliação dos resultados dos projetos brasileiros até agora? Ter-Minassian: Que eu saiba o Tesouro ainda não divulgou o relatório de implementação desses projetos. Eles tinham inicialmente uma descrição, com as datas de implementação e alguns parâmetros. Acredito que eles devam divulgar isso trimestralmente, o primeiro provavelmente sairá em julho. Valor: No relatório o Fundo critica os governos que assumem risco demais nas parcerias com o setor privado. Mas o problema é que muitos investidores exigem isso para colocar o dinheiro...

A melhor maneira de criar espaço para o investimento público é reduzir as despesas, possibilitando a queda dos juros"

Ter-Minassian: Não somos contra o governo fornecer garantias. Há certos riscos que devem ser assumidos pelo setor público, e outros pelo setor privado. Os governos deveriam assumir riscos relacionados ao ambiente regulatório, questões que impeçam o reajuste de tarifas etc. Esses riscos regulatórios são a maior preocupação dos investidores, porque não podem ser gerenciados comercialmente. Já os riscos de taxa de juros e câmbio são um fato da vida para qualquer investidor, esteja ele no Brasil ou em qualquer mercado. Esse risco faz parte da análise de custo/benefício para qualquer investimento, e afinal essa é a essência do setor privado. O trabalho deles é tomar riscos e receber o retorno. O risco de performance (de entrega do serviço nos padrões requeridos) também normalmente fica com o setor privado. Em alguns casos há um espaço para a divisão de alguns riscos, como o de demanda, entre o setor público e o privado. No Chile, o governo assume parte do risco se a demanda não for suficiente, mas recebe parte maior se a demanda for acima da expectativa. A questão é como contabilizar essa transferência de risco e assegurar-se que o governo não arque com risco demais. O valor presente do risco assumido pelo governo deve ser consistente com a sustentabilidade da dívida pública e é um fator fundamental nessa análise. A mensagem é que os governos não podem assumir risco demais, para evitar tornar a dívida insustentável. Valor: O FMI discorda do padrão que está sendo proposto para contabilidade de parcerias na Europa ? Ter-Minassian: O problema é que na Europa o foco tem sido pura e simplesmente na contabilidade do investimento, se ele deve ser classificado como público ou privado. Por causa das exigências do Pacto de Estabilidade, está mais exposta a necessidade de reduzir o déficit fiscal. Claro que muitos governos querem classificar as coisas como investimentos privados. A Eurostat (órgão da Comissão Européia de estatísticas públicas) está adotando o seguinte critério: num projeto no qual o risco da construção e o de demanda ou performance sejam assumidos pelo setor privado, o projeto é classificado inteiramente como privado. Mas isso significa que num projeto no qual a maior parte dos riscos de demanda e financeiros (taxa de juros, câmbio) sejam assumidos pelo governo, o projeto é classificado como privado. Achamos esse critério frouxo demais. Mesmo se concordássemos, é necessário explicitar esses riscos quando se avalia a sustentabilidade da dívida do país. Não importa qual seja o tratamento estatístico, é necessário que haja transparência sobre os valores. Estamos recomendando que o staff leve isso em consideração na fiscalização ou em programas com o FMI. Também é importante limitar os riscos. Na lei brasileira das parcerias público-privadas (PPP) há um limite total para pagamentos futuros do governo como porcentagem da receita - no caso brasileiro é de 1%. Estamos esperando para ver os detalhes de como será feita a contabilidade pública pelo Tesouro. Valor: De um total de 115 estatais analisadas só três foram consideradas empresas comercialmente administradas. No Brasil nenhuma estatal foi considerada independente... Ter-Minassian: O critério inicial era bem rígido, e por isso propusemos uma abordagem mais flexível. O importante não é considerar se a empresa é gerenciada comercialmente, mas se ela cria riscos para as finanças públicas. Pela sua natureza, as estatais não serão exatamente gerenciadas como se fossem privadas. O governo as mantêm no domínio público porque quer utilizá-las para objetivos de política pública, mas essas compensações devem ficar explícitas. Elas podem não ser gerenciadas comercialmente, mas também não criar um buraco fiscal, então podem ser excluídas dos indicadores fiscais. Um ponto importante é a abrangência das estatísticas fiscais. Os latino-americanos têm razão em chamar a atenção para o fato de as estatísticas na região serem muito mais abrangentes do que em outros países. Por isso defendemos a expansão da cobertura de estatísticas fiscais fora da América Latina, inclusive em alguns países industrializados. Valor: No caso brasileiro, depois dessa longa discussão seriam liberados 0,15% do PIB para investimentos. Não seria muito mais importante avançar na estabilidade macroeconômica e reduzir juros? Ter-Minassian: Concordo totalmente. Basicamente, o superávit primário precisa continuar alto porque o endividamento ainda é alto em países emergentes. O objetivo fundamental do projeto é instigar a cultura de avaliação e monitoramento de projetos. Com procedimentos melhores, você consegue fazer mais com o mesmo volume de dinheiro, por isso apoiamos esse esforço. Mas em última análise eu concordo totalmente com os que afirmam que a melhor maneira de criar espaço para investimento em infra-estrutura é reduzir despesas correntes e continuar a reduzir o risco do país, possibilitando a queda dos juros. Se fosse escolher o ponto mais importante para melhorar a qualidade do investimento público, apontaria a avaliação rigorosa dos investimentos baseada numa análise técnica do custo/benefício. O mecanismo deveria impedir que qualquer projeto abaixo do requisito mínimo seja implantado, sem exceções, não importa quão grande ou importante seja o projeto. Isso requer vontade política, mas compensa em termos de maior eficiência dos recursos públicos. Valor: Esse mecanismo rigoroso pode reduzir a corrupção? Ter-Minassian: A corrupção não é fácil de eliminar, mas se há uma análise de custo/benefício rigorosa, você exclui os projetos anti-econômicos. Isso precisa ser complementado por um acompanhamento de perto da implementação do projeto, cumprimento de prazos e custos. É uma cultura de muito mais de escrutínio, tanto na avaliação quanto na implementação. Valor: O sistema de metas de inflação não cria uma armadilha em termos de interromper o crescimento periodicamente? Sempre que o país começa a crescer surgem novamente pressões inflacionárias... Ter-Minassian: Não acredito. Falando como macroeconomista, há muitos países que usaram o sistema sem criar um padrão de "stop and go" no crescimento. No caso do Brasil, a volatilidade das expectativas de inflação cria um sentimento de vulnerabilidade aos choques, mas se você usasse outra meta, taxa de câmbio ou base monetária, ainda haveria volatilidade. O Brasil teve muito sucesso com o sistema, que realmente baixou a inflação. Se você lembrar de como eram as expectativas inflacionárias no Brasil, a experiência é quase um milagre. Valor: A crise política do governo Lula pode ameaçar a credibilidade econômica que foi conquistada a duras penas? Ter-Minassian: Certamente espero que não. Mas isso não é algo que eu possa comentar, não acompanho mais o Brasil tão de perto como antes.