Título: A solidão é senhora
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 21/06/2005, Opinião, p. A13

A solidão conjugal feminina - aí incluindo as solteiras, as descasadas e as viúvas - aumentou nas últimas três décadas. Nas mulheres com mais de 20 anos, a solidão cresceu de 35,5% para 38,4% entre 1970 e 2000, mas ficou estável entre os homens, em 31%. A fim de separar efeitos demográficos derivados de alterações da estrutura etária da população feminina das mudanças comportamentais de mulheres de cada faixa etária, simulamos o comportamento de 2000 com a pirâmide etária de 1970. A lição deste exercício é que o número de solitárias cresceu entre 1970 e 2000, quando o mesmo deveria cair pelo envelhecimento da população. A proporção de descasadas e de viúvas deveria subir e o de solteiras cair, efeito último que dominaria pelo seu maior peso relativo. Analisando o conjunto de solitárias, a proporção cairia de 35,5% para 32,4% pelo efeito demográfico puro, mas, como vimos, aumentou para 38,4% pela escolha realizada em cada idade por efeito comportamental. Em suma, existe tendência duas vezes maior de escolha das mulheres pela vida solitária do que a sugerida pela simples leitura dos dados agregados. De modo geral, os comportamentos conjugais são bastante distintos entre homens e mulheres ao longo do ciclo de vida. Homens mais velhos parecem não conseguir ficar sozinhos. Elas são mais sozinhas em idades mais avançadas; eles, na juventude. Existe coincidência das taxas de solidão conjugal feminina e masculina na faixa dos 30 aos 34 anos: 26% deles (as) estão sozinhos (as). A partir dos 35 anos, a distância entre as taxas de solidão de mulheres e homens cresce com a precisão de um relógio suíço: cerca de um ponto percentual (pp) a cada ano até a terceira idade. Ou seja, aos 40 a diferença será de 5 pp, ao 45 anos de 10 pp e assim por diante até atingir 25 pp aos 60 anos. Padrão etário idêntico das diferenças de solidão por sexo é encontrado em 1970. Fatores demográficos e econômicos explicam a maior solidão feminina em idades mais avançadas, a saber: as mulheres vivem mais que os homens e preferem homens mais velhos (e/ou vice-versa); já no lado econômico, temos a maior independência feminina conquistada nos últimos trinta anos. Há maior participação feminina na população como um todo, apesar da freqüência mais elevada de nascimentos masculinos (51%). Como elas vivem mais que eles, ao fim e ao cabo representam 55% da população de mais de 60 anos. Além disso, é comum a união entre homens mais velhos com mulheres mais novas (33 milhões dos 36 milhões das uniões ), o que intensifica a falta de parceiros disponíveis às mulheres nas idades mais avançadas. Segundo o último censo, cerca de 74% dos casamentos, formais ou informais, são compostos por homens mais velhos que as mulheres, em 19% vale o inverso e em 6,9% a idade é igual. Estas estatísticas também são muito próximas das observadas em 1970. Ao abrirmos o quadro acima incorporando o caso mais extremo, observamos que, quando as diferenças de idade são acima de 10 anos, temos 14,7% dos homens e 6,67% de mulheres pelo menos 10 anos mais velhos que os respectivos parceiros. Em 1970, era ainda mais comum a união de mulheres com homens muito mais velhos: 23,4%. A redução de uniões com homens mais de dez anos mais velhos é consistente com a da viuvez feminina observada: 10,7% para 8,9% entre 1970 e 2000. Nas mulheres com 60 anos ou mais, a taxa de viuvez cai de 50% para 40% no período. A alta taxa de viuvez feminina deve-se à combinação da maior expectativa de vida delas, aliada ao hábito de casamento de mulheres mais novas com homens mais velhos. Por exemplo: em 1991, entre os que se casaram, 85% das mulheres contra 66% dos homens já consumaram a primeira união até os 25 anos de idade.

A partir dos 35 anos, a distância entre as taxas de solidão conjugal das mulheres e as dos homens cresce um ponto anualmente

Em termos econômicos, a solidão conjugal é mais presente entre as mulheres com melhor situação sócio-econômica, ou seja, as sozinhas tendem a apresentar um nível de escolaridade maior e a ter melhores salários frente às demais. A maior escolaridade das solitárias é comprovada comparando mulheres com as mesmas características, como região, raça, idade, etc. A possibilidade de uma mulher desacompanhada ter mais de 12 anos de estudo é quase 70% superior do que para as acompanhadas. A renda média das sozinhas supera em 62% a das acompanhadas. Esta dominância é válida para cada combinação de faixa etária e tipo de renda. As maiores diferenças entre sozinhas e acompanhadas são encontradas nas rendas previdenciárias e nas transferências privadas. Estas duas fontes, mais as rendas do trabalho, figuram entre as três principais modalidades de proventos das sozinhas. O aumento de participação da mulher e, mais recentemente, a redução do diferencial salarial por gênero, pode estar influenciando o movimento em direção à solidão conjugal, assim como o direito previdenciário e o de família. No Brasil a aposentadoria das mulheres se dá cinco anos mais cedo que a dos homens e o sistema jurídico oferece proteção no caso de descasamentos, formais ou informais, tanto em pensões alimentícias como de previdência. Na análise mais detalhada do perfil etário do binômio estado civil/fonte de renda, notamos nas pensões e aposentadorias que as principais beneficiárias são as viúvas e as solteironas, o que reflete a passagem de direitos adquiridos de maridos e dos pais. No caso de transferências privadas que incluem pensões alimentícias, o grupo de descasadas se destaca em relação aos demais estados conjugais femininos. Cabe notar a queda acentuada destas rendas dos 45 anos em diante, o que pode refletir tanto perda de valor das pensões pela inflação como mudanças de status econômico dos "ex". Finalmente, maiores salários são encontrados entre as descasadas e as solteironas. Uma interpretação é que a revolução econômica feminina das últimas décadas conferiu à mulher liberdade na escolha de estar só ou acompanhada. Esses dados estão no site www.fgv.br/cps, que oferece, além da pesquisa "Sexo, Casamento e Economia", banco de dados aberto e amigável sobre a intensidade e a diversidade de casamentos e descasamentos para cada local do país.