Título: Previdência social precisa parar de financiar Brasílias
Autor: Sergio G. Ferreira
Fonte: Valor Econômico, 23/06/2005, Opinião, p. A12
Desde a construção de Brasília, os recursos da contribuição previdenciária têm sido usados para outros fins que não o de financiar a aposentadoria dos contribuintes. Nesse sentido, políticas populistas que fazem uso da receita previdenciária em prol de não contribuintes, se equivalem - em termos da solvência do sistema - ao uso dos mesmos recursos para a construção de Brasília, tal como feito por JK nos anos dourados. O INSS tem apresentado déficits desde 1996. A combinação de receitas estáveis e crescentes gastos com benefícios de aposentadoria tem elevado continuamente o déficit, que alcançou 1,82% do PIB em 2004. Esse déficit é principalmente resultado da Constituição de 1988, que aumentou substancialmente o escopo da previdência sem aumento proporcional nas alíquotas de contribuição. Qual é a fonte do déficit? Previdência social é uma categoria muito ampla e heterogênea, envolvendo um conjunto muito abrangente de políticas. Algumas despesas não vinculadas à contingência da aposentadoria (por exemplo, auxílios maternidade, doença, acidente de trabalho, dentre outros) são atribuições do INSS, mas poderiam estar em qualquer outro ministério, sem perda do foco na população atendida. Tais despesas somaram 0,82% do PIB de 2003. Por outro lado, alguns benefícios focados em população idosa não são financiados pela contribuição previdenciária sobre o salário. Por exemplo, benefícios vitalícios para indivíduos mais velhos de 65 anos que provam ter renda familiar per capita inferior a 25% do salário mínimo (chamados Loas em homenagem à lei que os criou) são financiados por impostos gerais, e assim não entram no computo do déficit previdenciário. Tais despesas têm crescido a taxas muito elevadas desde 2002, alcançando 0,43% do PIB de 2004. Se considerarmos o sistema previdenciário estritamente voltado para a geração de renda vitalícia após uma idade de elegibilidade (definida por tempo de contribuição ou idade, ou motivada por incapacidade laboral), este sistema gera um déficit corrente de 1,42% do PIB. Essa distinção é uma mera filigrana contábil? Não, porque essas categorias de gasto são estritamente ligadas à mais importante restrição demográfica pendente sobre o país atualmente, qual seja, a tendência de nossa população ganhar fios de cabelos brancos. A proporção da população com mais de 60 anos era de 8,9% em 2005 e será de 17,1% em 2030. Conseqüentemente, o impacto fiscal da extensão dos benefícios previdenciários a subpopulações ainda não atendidas (por exemplo, donas de casa) é relativamente pequeno hoje, comparado ao que será em 20 anos. Podemos ver o sistema previdenciário brasileiro como aquele em que o indivíduo, ao contribuir, estaria na realidade "comprando" direito a rendimento previdenciário futuro. O governo federal, ao coletar contribuições, está na realidade adquirindo uma dívida implícita, cujos credores são os cotistas do sistema, ou seja, todos nós que trabalhamos em regime celetista. A maturidade de tal dívida, ou seja, seu prazo de vencimento, é muito mais longo do que o prazo médio da dívida mobiliária do governo federal, mas o rendimento implícito dessa dívida é muito elevado para grande parte dos "credores" (por exemplo, trabalhadores rurais; indivíduos que se aposentam por tempo de contribuição e vivem longa sobrevida; ou recipientes do Loas), e é alta o bastante para segmentos privilegiados (mulheres, que se aposentam cinco anos antes que homens).
Tesouro não cria renda do nada: alguns grupos têm de pagar pelas transferências no sistema previdenciário
Obviamente, como o Tesouro não cria riquezas do nada, alguns subgrupos têm de pagar pelas transferências implícitas no sistema previdenciário. Mas boa parte daqueles que o farão ainda não entraram no mercado de trabalho. Na realidade, a lógica desse jogo é semelhante ao da corrente, que gera retornos altos para os primeiros elos, e perdas enormes para os últimos. O crescimento exponencial da base contributiva, seja na forma de aumento populacional, seja na forma de crescimento da produtividade do trabalho e, portanto do salário de contribuição, é a única maneira de perpetuar ganhos líquidos para todas as gerações envolvidas nesse jogo de Ponzi. Como brasileiros estão vivendo mais, e como crescentes redistribuições para populações de não contribuintes ocorreram ao longo da década de 1990, não é uma surpresa que o sistema esteja desequilibrado. Algumas projeções preliminares do impacto da demografia indicam que os benefícios serão de 10% do PIB em 2030, supondo que a economia cresça a 3% anual, levando o déficit previdenciário estrito senso para 4,42% do PIB. Governos mudam a cada quatro ou oito anos, enquanto direitos previdenciários são de realização mais longa. O descompasso entre o horizonte político e o previdenciário cria incentivos para o adiamento de reformas pelos políticos ou, pior, para a acumulação de novas fontes de desequilíbrio (como por exemplo, a recente antecipação do direito ao Loas de 67 para 65 anos de idade, embutida no Estatuto do Idoso), que rendem dividendos políticos no presente, às expensas de futuros custos fiscais. Princípios que qualquer reforma deve seguir são: a) o equilíbrio atuarial entre benefícios e contribuições, que pode ser tanto perseguido em nível individual ou global e b) isolamento de novas regras de interferências políticas. Existe um largo espectro de possibilidades que levariam à condição , como por exemplo, reformas que mantenham o sistema de benefício definido, mas com um aumento da idade de elegibilidade; introdução de teste de rendimentos que adie os benefícios para aqueles que continuem trabalhando, tal como nos EUA; desvinculação do benefício previdenciário dos reajustes do salário mínimo, como em qualquer país sem jabuticaba; privatização do sistema, tal como no Chile; criação de contas nocionais, tal como na Suécia etc. Entretanto, existe um subconjunto muito menor de desenhos que levariam à condição, e na realidade é esta última que garantirá a credibilidade do sistema. A efetiva proteção futura dos rendimentos de aposentadoria do cidadão brasileiro não ocorrerá enquanto o sistema político não amarrar seus próprios braços, abstendo-se do vício de construir novas Brasílias com o dinheiro da previdência.