Título: Ainda a questão dos juros
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 23/06/2005, Opinião, p. A13

A trinca de economistas Persio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende vem há uns dois anos trabalhando em cima da idéia da incerteza jurisdicional e o efeito que isso tem sobre a taxa de juros no Brasil. Baseia-se na suposição de que as iniciativas de moratória das décadas de 80 e 90 afetaram e ainda afetam a taxa de risco do país. Pior ainda, a incerteza relacionada ao cumprimento dos contratos seria responsável pela elevação dos juros para operações realizadas em reais, uma moeda que não tem conversibilidade no exterior, uma tese que tem sido cara especialmente a Persio, defensor da abertura da conta de capital como forma de viabilizar operações financeiras e comerciais em reais no exterior. O fulcro da idéia é a evidência de que o país consegue captar no exterior, em dólares, a prazos longos, enquanto que dentro do país as operações ficam confinadas em sua grande maioria ao curto prazo, inviabilizando assim a formação de uma curva de juros de longo prazo, à semelhança do que existe em outros países. Recentemente, três economistas ligados à universidade da Califórnia, em Berkeley, tentaram testar a tese da incerteza jurisdicional, a qual passaram a chamar de ABL (Arida, Bacha e Lara Resende). "Can jurisdictional uncertainty and capital controls explain the high level of real interest rates in Brazil? Evidence from panel data" ("Podem a incerteza jurisdicional e o controle de capital explicar os altos níveis de taxa de juros reais no Brasil? Evidência a partir de um apanhado de dados") é o título do texto de autoria de Fernando Gonçalves, Marcio Holland e Andrei Spacov, cujo primeiro rascunho circulou em abril deste ano, a partir de agora denominada de exercício GHS. Gonçalves e Spacov atuam no Departamento de Economia de Berkeley, enquanto que Holland é economista visitante no Centro de Estudos Latino Americanos, na mesma universidade. O objetivo de todos - de ABL, dos três de Berkeley e de outros economistas preocupados com as questões brasileiras - é entender o motivo que faz com que, aqui, a taxa de juros de curto prazo seja tão alta em comparação com outros países. Em termos reais, manteve-se na média de 14% ao ano no período entre 1996 e 2002, bem acima das taxas praticadas até mesmo no mundo dos países em desenvolvimento. Vários diagnósticos têm sido levantados. A tese de ABL - já tratada aqui neste espaço - é instigante porque, pela primeira vez, se tenta relacionar a questão jurisdicional ao tamanho dos juros, de forma organizada. A tese de ABL, no entanto, é difícil de ser testada porque o campo jurisdicional é vasto, subjetivo, tem peculiaridades específicas ligadas à história de cada país e, além disso, carece de informações e dados que possam funcionar como uma medida metodológica. Na idéia básica em ABL, tem a ver com o funcionamento de instituições que são propensas a favorecerem os devedores em detrimento dos credores, incluindo as decisões tomadas em fórum judicial. Também a questão do maior ou menor controle da conta de capital do balanço de pagamentos exige uma certa padronização, de modo que se possa comparar momentos diversos com o nível dos juros, além de uma comparação entre os diversos países.

Estudos não confirmam a relação entre a não-conversibilidade da moeda e a incerteza jurisdicional na formação dos juros

Os autores de Berkeley buscaram desenvolver um exercício empírico para testar as conjecturas de ABL assim resumidas: os juros reais de curto prazo são baixos quando há boa jurisdição, independente da moeda local ser ou não conversível (seria o caso do México, na primeira situação, e da Índia, na segunda situação) enquanto que a má jurisdição, combinada com conversibilidade, resultaria em moderada taxa real de juros. No extremo, quando vem casada com moeda não-conversível, o resultado seria invariavelmente alta taxa real de curto prazo. Neste caso se encaixaria o Brasil. No modelo de GHS, três variantes foram testadas com o objetivo de verificar se a propositura ABL está ou não correta na forma em que relaciona as principais variáveis - incerteza jurisdicional e o grau de abertura da conta de capital - com o nível da taxa de juros real de curto prazo praticada pelos países. Com relação à primeira variável, a avaliação GHS tentou estabelecer o mais difícil, ou seja, uma definição clara do que seja incerteza jurisdicional. Utilizou trabalhos elaborados por economistas do Banco Mundial, além dados do Instituto Fraser. No que diz respeito ao grau de abertura da conta de capital, os autores valeram-se de um índice desenvolvido pelo FMI, baseado em treze categorias de controle de capital. Varia de zero a 10, sendo que no ponto zero a moeda é caracterizada como perfeitamente conversível. GHS também testou outras duas variáveis, além daquelas de ABL, que podem ajudar a explicar o diferencial de taxas de juros reais de curto prazo entre vários países: a variável monetária, expressa na forma da taxa de inflação ao consumidor, e a variável fiscal, expressa na forma da dívida pública, externa e interna, em razão do PIB. Com os desdobramentos do teste para causas relacionadas aos "fundamentos da economia", o exercício GHS procurou verificar não só a robustez do argumento ABL para uma amostra de países, como também, partindo da suposição de que seja relevante, se não estaria (a tese de ABL) simplesmente capturando o impacto dos tradicionais fatores monetário e fiscal no nível da taxa de juro real, independentemente do arranjo institucional em que estão inseridos. A conclusão, para resumir, é que o exercício GHS rejeitou os resultados da conjectura de ABL e suas variantes, mostrando que a incerteza jurisdicional, a não-conversibilidade da moeda e sua interatividade não explicam satisfatoriamente a dispersão de juro real de curto prazo encontrada na amostra de países investigada. Já com respeito à correlação entre juros e as tradicionais variáveis monetária (inflação) e fiscal (relação dívida/PIB), GHS encontrou forte evidência estatística, indicando que aqueles são fatores mais relevantes para explicar o nível da taxa de juros. O trabalho de GHS, contudo, estimula a que outros exercícios de investigação sobre a questão da taxa de juros sejam desenvolvidos, em especial a construção de um modelo que permita efetivamente capturar, sem ruídos, a correlação da incerteza jurisdicional na formação da taxa de juros.