Título: O consumo, os índices de preços e as taxas de juros
Autor: João Saboia
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2005, Opinião, p. A10

Expansão do crédito consignado não estimulou a demanda nem pressionou a inflação

Diversos analistas econômicos têm culpado o governo por mostrar uma incoerência em sua atual política de combate à inflação. Segundo eles, enquanto, de um lado, o Banco Central (BC) aumenta a taxa de juros para conter a demanda, de outro o governo aumenta seus gastos e cria o mecanismo de crédito consignado em folha de pagamento, estimulando o aumento da demanda por consumo. A coluna de Miriam Leitão de 18 de maio, publicada em "O Globo" com o título "Dilema dos juros", é ilustrativa da questão. Ela afirma de forma bem clara que a demanda tem sido mantida pelo crédito consignado. Esta seria uma das causas para que, apesar das taxas de juros astronômicas fixadas pelo Copom, a demanda continue elevada e a inflação se recuse a baixar. Vejamos o resultado de uma pesquisa realizada pelo Ibope com 500 aposentados e pensionistas que utilizaram o crédito consignado oferecido pelo Banco Cruzeiro do Sul, também publicada na mesma edição de "O Globo". Trata-se apenas de uma pequena amostra que exclui os trabalhadores ativos que utilizam tais empréstimos. De qualquer forma, os resultados encontrados são indicativos da destinação final dos recursos obtidos com o crédito consignado. Sessenta por cento informaram que tomaram o empréstimo para quitar dívidas, 27% para reformar a casa, 9% para cuidar da saúde, 2% para a compra de eletrodomésticos, 1% para a compra de automóvel e o restante por outras razões. O resultado contraria a afirmação de que o crédito consignado pode ter um efeito importante na manutenção da inflação. A maior parte dos tomadores de tais empréstimos utiliza os recursos para abater dívidas, certamente obtidas a taxas de juros bem mais elevadas que aquelas pagas no crédito consignado. Portanto, os aposentados e pensionistas pesquisados estariam sendo racionais ao trocarem dívidas com juros mais altos por dívidas com juros mais baixos. Os gastos com reforma da casa dificilmente seriam razão para pressionar a inflação. Reparos na habitação têm um peso de apenas 0,5% no IPCA. Por outro lado, o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC) acumulado nos últimos meses tem ficado bem próximo do Índice Geral de Preços (IGP), que continua puxado pelo Índice de Preços por Atacado (IPA). Portanto, é difícil justificar pressão inflacionária por esses gastos feitos com crédito consignado. O crescimento dos custos na área de saúde tem outras causas e não pode estar associado a um eventual aumento da disponibilidade de recursos, por parte de aposentados e pensionistas, para cuidar da saúde.

BC deveria adotar meta só para preços livres, em vez de tentar controle impossível de preços administrados

Segundo a mencionada pesquisa do Ibope, apenas 3% das pessoas pesquisadas informaram que utilizam os recursos na compra de veículos e eletrodomésticos, um volume irrisório para pressionar os preços no setor de bens duráveis. Portanto, acusar o crédito consignado em folha de pagamento como responsável por uma eventual pressão de demanda e, conseqüentemente, pela dificuldade na redução da inflação, parece um grande equívoco, resultante de uma análise desatenta de informações existentes. Caberia acrescentar que, segundo o BC, o crédito consignado em folha de pagamento representa apenas 3% do volume total de créditos no país. Conforme é fato notório, a inflação brasileira está sendo puxada pelos preços administrados pelo próprio governo e não por um suposto aumento da demanda de aposentados e pensionistas. Em artigo publicado no Valor de 16 de maio, Sergio Werlang analisa os números da inflação dos últimos anos confirmando que os preços administrados têm crescido muito mais que os preços livres. Tal fato se deve em parte aos contratos firmados com as empresas de telefonia e de energia elétrica que participaram dos programas de privatização do governo FHC, assim como a choques de oferta como o ocorrido recentemente com o petróleo. Segundo o autor, em 2004 os preços administrados subiram 10,2%, enquanto os livres não passaram de 6,5%. Para 2005, sua previsão é de 8% e pouco mais de 5%, respectivamente. Werlang - por sinal, um dos criadores do sistema de metas da inflação no Brasil - criticou no referido artigo o excesso de conservadorismo do BC na condução do sistema de metas inflacionárias. Da mesma forma que em meu artigo publicado no Valor de 11/04, chama atenção para o fato de que o sistema de metas possui uma banda superior que deveria ser utilizada para absorver os efeitos de choques de oferta e dos aumentos dos preços administrados sobre a inflação. Critica ainda o fechamento da banda para 2006, o que dificultaria ainda mais a absorção de eventuais choques de oferta e do crescimento dos preços administrados no futuro dentro da banda. Insistir na política de juros elevados para combater uma inflação que não é de demanda é um erro grave da atual política monetária. Insistir em mirar no centro ou próximo ao centro da meta de inflação na atual conjuntura é outro erro. Estreitar a banda nos próximos anos é um terceiro erro. O final do ciclo de aumento dos juros que parece ter ocorrido na última reunião do Copom veio muito tarde. O estrago sobre o crescimento econômico já foi feito conforme mostram os dados das contas nacionais do primeiro trimestre deste ano. Já estamos na metade do ano e muito pouco poderá ser feito para recuperar o crescimento em 2005. Fica a pergunta: não seria o caso de se criar uma meta inflacionária para os preços livres e insistir na perseguição dessa meta em vez de tentar perseguir a qualquer custo a atual meta inflacionária onde o controle sobre 30% da inflação (resultante dos preços administrados) é muito difícil para não dizer impossível? Qual o poder do BC para controlar, por exemplo, os reajustes das passagens de ônibus no município do Rio de Janeiro? Que controle possui sobre o preço do petróleo no mercado internacional? Se a meta inflacionária fosse utilizada para os preços livres, ficaria claro que estaria havendo convergência para uma inflação próxima de 5,1% estabelecida atualmente como objetivo para 2005, abrindo espaço para uma maior flexibilização da atual política monetária.