Título: Garotinho e a dúvida da dívida
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2005, Opinião, p. A11

Em 2006, haverá eleições nacionais. Evidentemente, a estratégia que adotará o PMDB estará em parte condicionada pelo desfecho da atual crise política. De qualquer forma, se o partido concorrer com candidato próprio, convém prestar atenção às propostas do ex-governador Anthony Garotinho. Na comemoração dos cinco anos do Valor, um dos maiores banqueiros do país declarou que "Lula está fazendo tudo o que a gente quer" (Valor, 03/05/2005). O contraste entre essa declaração e o ânimo vigente nos meios financeiros acerca das perspectivas em caso de vitória do PT, no começo de 2002, é notável. Lembremos que, em 2001, o Instituto da Cidadania, ligado ao partido, divulgou um documento denominado "Um outro Brasil é possível", no qual, entre outras coisas, propunha-se um "limite de comprometimento das receitas com o pagamento de juros da dívida pública" (página 19). Dado o receio de que ultrapassar tal limite implicasse "fechar a porta de saída" do sistema financeiro, quando as eleições entraram no radar meses depois, tal postura gerou temores que, combinados com diversos problemas acumulados na gestão de FHC e com a situação internacional de 2002, propiciaram as condições para o estresse pelo qual o mercado passou naquele ano. Paradoxalmente, considerando as posições de Garotinho, que já aparece em segundo lugar em algumas pesquisas eleitorais, esse estresse, ainda que em menor grau, tem alguma chance de vir a se repetir em 2006, tendo agora a política do presidente Lula como alvo. A dívida líquida do governo é hoje menor que em 2002, mas os dados da tabela mostram que: 1) a queda da relação dívida/PIB entre 2002 e 2005 se deve à apreciação cambial. Como nos últimos 30 meses o dólar "derreteu", a dívida externa e interna indexada ao câmbio pesa hoje muito menos do que em dezembro de 2002. Já a dívida que o Banco Central (BC) denomina de "fiscal", cuja dinâmica está associada ao déficit público, é maior hoje que em 2002; e 2) a dívida mobiliária do governo federal aumentou 7 pontos do PIB entre 2002 e 2005.

Para evitar uma situação desfavorável, o governo deveria ter feito aquilo que um diretor do BC defendeu no começo de 2003: "Nos últimos quatro anos, os superávits primários foram sempre calibrados com o intuito de estabilizar ou até mesmo reduzir a relação dívida/PIB, mas sob hipóteses que afinal se revelariam otimistas. Para romper esse círculo vicioso, o governo deveria sair na frente, estabelecendo uma meta mais ambiciosa para o superávit primário que 4,25% do PIB. Ao tomar a liderança do processo, estabelecendo uma meta mais ambiciosa que poderia chegar a 5% do PIB, o governo estaria aumentando significativamente a chance de que a dinâmica adversa do endividamento brasileiro pudesse ser revertida" (Valor, 07/02/2003).

Se o candidato continuar defendendo a repactuação da dívida e emplacar nas pesquisas, poderá levar o mercado a um novo estresse

Como isso não chegou a ocorrer, a falta de uma contribuição maior da política fiscal e os elevados juros reais de 2003 e 2005 geraram um quadro fiscal que contrasta com o do setor externo. Enquanto que, por qualquer indicador, a situação externa tem melhorado mês após mês nos últimos três anos, o mesmo não pode ser dito sobre os indicadores de endividamento fiscal: em 2003, a relação dívida pública/PIB aumentou; e, em 2005, ela deverá se manter estável. É por isso que, da mesma forma que em 1998 e 2002, a dívida pública continua sendo objeto de referências no debate político. Em janeiro, Garotinho foi categórico a esse respeito, quando declarou que "Lula teria inicialmente que enfrentar cinco desafios. O primeiro seria colocar o sistema financeiro em seu devido lugar. Temos uma dívida pública beirando R$ 1 trilhão. Os próprios credores e o próprio governo sabem que essa dívida é impagável. É preciso ter a coragem de reestruturá-la" (Garotinho em entrevista ao Valor, 18/01/05). No final de 1998, em um discurso que foi um divisor de águas em relação à política de 1995/98, FHC declarou que "a sociedade quer que o governo faça muitas coisas, mas nem sempre dá os recursos suficientes para fazer", afirmando que "precisamos fazer o Estado viver dentro dos seus limites", gerando superávits primários "suficientes para impedir que a dívida pública cresça a um ritmo superior ao crescimento do PIB, mantendo estável essa relação ao longo do tempo" ("Jornal do Brasil", 24/09/98). Quatro anos depois, na Carta aos Brasileiros, Lula se comprometeu a "preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos". Qualquer semelhança entre as frases não é mera coincidência. Registre-se que o próprio Garotinho, em 2002, se comprometeu a respeitar o acordo com o FMI negociado na época, entre outras coisas para poder honrar a dívida. A combinação ideal de políticas em 2006 deveria envolver um aumento do superávit primário e uma queda dos juros, para diminuir a relação dívida pública/PIB. O que vai acontecer se Garotinho continuar julgando que a dívida deve ser repactuada e se ele for ao segundo turno? Os analistas de mercado têm desprezado como irrelevantes as chances eleitorais do ex-governador. Entretanto, considerando que: 1) o PMDB já decidiu que terá candidato; 2) Garotinho tem uma vasta penetração no interior, através de uma comunicação eficiente através do rádio; e 3) o governo mostra dificuldades de articulação, a possibilidade dele vir a ser o postulante do partido não pode ser desprezada. A pergunta chave é: caso Garotinho for candidato à presidência da República, estará disposto a repetir o compromisso da Carta aos Brasileiros? Em 2006, todos os detentores de aplicações financeiras vão estar pendentes dessa resposta e das pesquisas eleitorais.