Título: Embrião do documento nasceu em 1999
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2005, Especial, p. A12

Os sinais de que a quarta candidatura presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva seria diferente das demais surgiram em 1999, no Instituto Cidadania, a ONG criada pelo então candidato para reunir economistas de forma separada do partido. Lula participava das reuniões, criticadas pela chamada esquerda do PT, por criar um núcleo de discussão fora do ambiente petista. Em junho de 2001, o grupo produziu o texto "Um outro Brasil é Possível", que descartava rupturas tradicionais no discurso petista, como a moratória da dívida externa. "O documento de 2001 colocava a política social como eixo de desenvolvimento. O PT oscilava entre a linha que buscava a manutenção dos paradigmas econômicos do governo Fernando Henrique como os únicos possíveis e outra linha que pregava a ruptura total. Este texto procurava um meio-termo", afirma Ricardo Carneiro. Dentro do PT, a mudança em relação às posições tradicionais da sigla era mais lenta. No encontro nacional, no Recife, seis meses, depois, aprovava-se um documento cujo subtítulo era: "A ruptura necessária". Ainda assim, apontava para moderações futuras. "Temas como moratória e reestatização em massa já não faziam parte do documento, o que mostrava um debate em processo", afirma o economista Antonio Prado. Em meio à disputa ideológica, o prefeito de Santo André, Celso Daniel, escolhido como coordenador de programa de governo, foi assassinado em janeiro de 2002, antes de montar sua equipe. A discussão parou por três meses. O então prefeito de Ribeirão Preto, Antonio Palocci, o substitui, em março daquele ano. O hoje ministro começaria o processo que levou à redação do documento, apenas dez dias depois do comando da campanha concluir que a situação se agravava e uma armadilha política estava em curso. "Havia a constatação de que um jogo semelhante ao de 1998, quando a reeleição de Fernando Henrique foi anteposta ao caos, poderia ocorrer. José Serra seria apresentado como o único capaz de ajustar a economia. Era preciso apresentar os elementos de combate à crise latente que víamos: superávit primário, manutenção da política de metas e respeito aos contratos", lembra Prado. A "Carta ao Povo Brasileiro" foi divulgada em 22 de junho de 2002, um sábado. Naquela semana, o risco-país bateu em 1. 593 pontos, o maior desde janeiro de 1999, as agências Moody´s e Fitch IBCA rebaixaram a nota da dívida, o dólar atingiu R$ 2,77, com alta de 10% em três semanas e a Bolsa registrou a maior queda desde setembro de 2001. A conexão com a situação política era evidente: naqueles dias, o fato de maior impacto foi uma pesquisa do Ibope que mostrava Lula próximo de uma vitória ainda no primeiro turno da eleição presidencial. Tinha 38% das intenções de voto, ante 43% da soma de todos seus adversários. Acendera-se o alerta no mercado financeiro. Por mais que Palocci e o próprio Lula em encontros mostrassem ponderação, os interlocutores do mercado financeiro com o PT cobravam um documento escrito, que indicasse a manutenção de metas inflacionárias, superávits primários altos e respeito a contratos. A versão original da Carta foi escrita por um grupo restrito de assessores de Palocci, entre eles o jornalista Edmundo Machado de Oliveira, hoje gerente geral da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (Abdi). Os subsídios eram as conversas que Palocci tinha com petistas, empresários e agentes do mercado financeiro. A versão final contou com mudanças feitas por Lula, o próprio Palocci e outros integrantes do núcleo da campanha: Luiz Gushiken, José Dirceu e Luiz Dulci. Entre o primeiro e o último ato, o texto foi submetido a vários interlocutores com os quais Palocci já tinha conversado. Segundo um desses interlocutores, que prefere falar sob reserva, a Carta foi "um conforto a formadores de opinião", que temiam o discurso da ruptura que o PT trazia de Recife. Na avaliação deste dirigente, a Carta dava seqüência a um movimento que começara com a busca de alianças que fez de José de Alencar, do PL, o vice, e da contratação do marqueteiro Duda Mendonça. O essencial era um compromisso público para o que era dado como certo em conversas reservadas. "Não endosso nenhuma versão de que a Carta tenha sido uma guinada no que o candidato e seus assessores já vinham falando. O que faltava era documento escrito", diz outro dirigente, o presidente do Banco ABN Amro Real, Fabio Barbosa. Segundo o executivo, "Lula nas primeiras reuniões com o mercado já falava sobre manutenção de contratos, da responsabilidade fiscal e tudo o mais. O que não tinha naquele instante era um documento que resumisse a orientação que era dada e que não tinha maior alcance porque não estava consolidada em um documento de fácil referência como foi a Carta ao Povo Brasileiro". Antes da Carta, Fabio Barbosa diz ter tido conversas com Palocci, mas ressalva não ter se envolvido na elaboração do documento. "Palocci teve contatos com algumas pessoas do mercado, eu tive uma ou duas conversas com ele antes da Carta. Ele mostrou ter bom senso e que ouve muito. Na época, eu procurava mostrar que o país teve evoluções importantes nos últimos anos que precisavam continuar: a Lei de Responsabilidade Fiscal e o horror à inflação", conta Barbosa. Dissociar esquerda de populismo era o desafio essencial de Palocci para ganhar a confiança do mercado para seu candidato. Antes mesmo de ter sido escolhido coordenador do programa de governo, em fevereiro de 2002, o então prefeito de Ribeirão Preto avaliava que o sistema financeiro era o mais refratário a Lula. "A questão era a seguinte: terá o Brasil maturidade suficiente para eleger um governo de esquerda que adote medidas econômicas consistentes, ou o novo governo de esquerda vai-se curvar a políticas econômicas populistas? Esta incerteza causou uma desconfiança de ativos brasileiros em geral, o que foi refletido no aumento do risco Brasil", resume o economista Sérgio Werlang, diretor do Banco Itaú, que nega ter sido consultado por Palocci. Embora Palocci tenha feito concessões na forma final do documento, o objetivo essencial havia sido atingido: o sistema financeiro considerou o documento um compromisso suficiente. Foi o começo de um relacionamento que só se fez aquecer. "O partido optou, na Carta, pelo respeito aos contratos e obrigações do país, à austeridade fiscal, e do controle da inflação, passando pela diminuição da vulnerabilidade externa. Aliás, a insistência nesta política econômica e a demonstração que um partido de esquerda poderia implantar tais medidas, sem resvalar para o populismo, é um exemplo a ser seguido na América Latina", diz Werlang. (Colaborou Cláudia Safatle, de Brasília)