Título: Governo fica aquém do prometido na Carta
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2005, Especial, p. A12

Política Econômica Cumpriu-se o compromisso com a estabilidade, mas crescimento ficou submetido ao superávit

Três anos depois de divulgada pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, a "Carta ao Povo Brasileiro"- documento que marcou o compromisso do PT com a manutenção da estabilidade econômica - divide opiniões tanto no mercado financeiro quanto entre economistas que colaboraram com o candidato na época. Para o presidente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), Gabriel Ferreira, a Carta cumpriu seus objetivos e uma nova repactuação não é mais necessária em 2006. Nem para Lula, que manteve o mesmo regime cambial, de metas inflacionárias e de superávit primário que marcou o segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, nem para qualquer dos possíveis candidatos da oposição, incluindo o ex-governador do Rio, Anthony Garotinho (PMDB). "A Carta pertenceu a um momento que não se repete mais. Era necessário um compromisso que transmitisse confiabilidade e transparência, dado que o PT representava até então uma ruptura que ninguém mais propõe", afirma. Ferreira era o presidente da Febraban em 2002. De acordo com ele, "a tendência é que muito antes das eleições, os candidatos apresentem propostas claras na área econômica , dispensando um documento nos moldes daquele". De forma reservada, um alto dirigente de uma instituição financeira faz a análise oposta: vê a possibilidade do mercado pedir iniciativas como a Carta se o presidente for para a reeleição sob forte pressão do PT, em função dos desdobramentos da crise política, para que se mude a política econômica, ou se Garotinho construir um discurso contra o mercado financeiro semelhante ao de quatro anos atrás. Coordenador da parte econômica do programa de governo, o economista da Unicamp Ricardo Carneiro afastou-se da equipe chefiada pelo hoje ministro da Fazenda, Antonio Palocci, mas analisa hoje que o País seria muito diferente caso o documento fosse seguido à risca pelo governo Lula. " A política econômica foi muito mais para a direita do que a Carta. Este documento não reflete a hegemonia completa que o Palocci veio a ganhar na política econômica. Na Carta está dita apenas uma coisa óbvia que ninguém da esquerda do partido podia discordar, a de que não iríamos dar calote na dívida", afirma o economista. Segundo Carneiro, o documento apresenta uma premissa oposta à seguida hoje pela equipe econômica: apresenta o crescimento econômico como fator para o equilíbrio fiscal e não o oposto. O documento afirma que "só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro" . O texto chega a criticar a âncora quando afirma que o ' caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo", afirma, citando um trecho do documento. Carneiro ainda chama atenção para o trecho do documento em que se afirma que a estratégia ideal para reduzir a vulnerabilidade externa era "trilhar o caminho da redução (...) pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas". A carta ataca a estratégia do governo de então de "desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranqüilidade e compromisso com o Brasil ". Falando em primeira pessoa, Lula - único signatário - afirma "como todos os brasileiros, quero a verdade completa". Critica o governo Fernando Henrique pela prolongada valorização do real no primeiro mandato e conclui. "Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal". Coordenador executivo do programa de governo, o economista Antonio Prado, que hoje chefia o escritório do BNDES em Brasília, rebate. "O documento se propunha a impedir que uma crise se aprofundasse e do ponto de vista de superação da vulnerabilidade externa mostrou que foi cumprido. O déficit de transações correntes foi transformado em saldo. A relação dívida/PIB caiu. A dívida atrelada ao dólar também. Está condizente com o compromisso expresso de " preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar seus compromissos", afirmou. Diretor do Banco Itaú , o economista Sérgio Werlang também não vê contradições entre as intenções manifestadas na Carta e o procedimento do governo. "Especialmente no que se refere à diminuição da vulnerabilidade externa, os compromissos foram mantidos como mostram todos os indicadores", afirma o economista, em entrevista por correio eletrônico. Segundo Werlang, " no ano de 2004 já houve uma recuperação do consumo de 4,4% e a inflação foi mantida em níveis baixos. Além disso, com o advento do crédito consignado, foi possível um grande aumento do crédito à pessoa física, com uma queda dos spreads . Isto assegura que o Brasil moveu-se na direção desejada em relação ao consumo de massas, e a seu poder aquisitivo", afirmou. Para Werlang, a carta não atingiu seus objetivos onde, na sua visão, fez simplificações conceituais. Usa como exemplo a promessa de que, com a redução da vulnerabilidade externa, seria possível " reduzir de forma sustentada a taxa de juros (...) e recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico". Segundo Werlang, " há alguma relação entre a vulnerabilidade externa e os juros no longo prazo, entretanto, no curto prazo esta ligação é tênue, e pode ser até mesmo inversa por períodos curtos". O economista do Itaú também relativiza o trecho em que se estabelece o primado da volta do crescimento De acordo com Werlang, "a volta do crescimento é um fator de grande importância mas não é o único fator. Também o são a velocidade da queda da relação dívida/PIB, o tamanho dos gastos do governo no PIB e o grau de abertura da economia brasileira". Werlang também analisa de forma crítica o trecho da Carta em que se acena com limites à busca do equilíbrio fiscal. De acordo com o documento petista, " o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores ". Para Werlang, "quando a relação dívida/PIB cair abaixo de 25%, então poderemos diminuir a carga tributária, baixando o superávit primário. Isso foi feito pela Irlanda, que diminuiu seu superávit primário após cerca de 13 anos com o mesmo superior a 5% do PIB".