Título: Expansionismo punitivo e crime tributário
Autor: Juliana Cabral
Fonte: Valor Econômico, 22/10/2004, Legislação & Tributos, p. E-2

As intenções acerca da reforma do tratamento criminal aos ilícitos tributários estão expressas no Projeto de Lei nº 3.670, de 2004, de autoria do Deputado Paulo Rubem Santiago (PT). O aludido projeto objetiva, em síntese, duas mudanças. Em um primeiro aspecto, traz a revogação do dispositivo legal que contempla o pagamento do tributo como um freio à imposição de pena criminal - causa de extinção da punibilidade (revoga o artigo 34 da Lei nº 9.249/95). Seguindo o mesmo intento de expansão do sistema punitivo, o projeto pretende modificar a natureza dos delitos tributários, de crimes ditos materiais para formais (modifica a redação do artigo 1º da Lei nº 8.137/90). A reboque destas modificações, em franca oposição ao recentíssimo entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o projeto de lei deixa livre o caminho da ação penal promovida pelo Ministério Público (MP) para a punição de crime tributário, tornando de uma vez por todas dispensável a conclusão de procedimento administrativo fiscal (revoga o artigo 83 da Lei nº 9.430/96). Com o intuito de maximizar a compreensão dos problemas que se apresentam, a análise das modificações que se pretende implementar sob a orientação do aludido projeto de lei será realizada em quatro momentos distintos. Por ora, serão tecidos comentários a propósito da primeira mudança enunciada, referente à almejada revogação do tratamento extintivo da punibilidade conferido ao pagamento do tributo. Ficam, então, para oportunidades seguintes, novas notas que abordarão os demais aspectos. Neste momento inicial, é importante ressaltar que a pretendida exclusão dos efeitos extintivos da punibilidade conferidos ao pagamento do tributo nos crimes contra a ordem tributária vem na contramão da história.

O STF tem reconhecido a extinção da punibilidade pelo pagamento, com ou sem parcelamento prévio, a qualquer tempo

A primeira lei a tratar, sob a ótica penal, da sonegação de tributos, foi a Lei nº 4.729, publicada no regime militar de Castelo Branco, em 1965, que nem por isso deixou de trazer o pagamento como causa extintiva da punibilidade, desde que efetuado antes do início da ação fiscal. Logo em 1967, o Decreto-Lei nº 157 conferiu os mesmos efeitos ao pagamento realizado, desta vez estendendo a oportunidade até o momento seguinte ao julgamento administrativo de primeira instância. Em momento posterior, nos tempos da implantação do projeto neoliberal do governo Fernando Collor de Mello, marcado pela intensificação das respostas penais (Lei de Crimes Hediondos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor), a Lei nº 8.137/90 também não deixou de prever a extinção da punibilidade pelo pagamento, já neste diploma ampliando o benefício a todo pagamento efetuado até o recebimento da denúncia na ação penal. Embora tenhamos vivenciado um pequeno lapso na exclusão da punibilidade operado pela revogação do dispositivo despenalizador através da Lei nº 8.383, em 1991, o privilégio ao pagamento foi retomado em 1995, através do artigo 34 da Lei nº 9.249, que ora se pretende, por esta lei em projeto, revogar. Olvidou, no entanto, o legislador, que, no momento atual, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo vem se fundamentando no parágrafo 2º do artigo 9º da Lei nº 10.684, de 2003. Este diploma normativo, ao dispor sobre o regime de parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal (SRF), atribui efeitos extintivos da punibilidade ao pagamento integral do débito objeto do parcelamento, sem qualquer restrição temporal. Em recentíssima posição, o Supremo - no julgamento do Habeas Corpus nº 81.929 - tem reconhecido a extinção da punibilidade pelo pagamento, com ou sem parcelamento prévio, a qualquer tempo, em aplicação analógica da causa despenalizadora, inclusive com efeitos retroativos, por força do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica ao réu (artigo 5º, inciso XL da Constituição Federal). Deste modo, a revogação do artigo 34 da Lei nº 9.249/95, pretendida pelo projeto em comento, além de vir em sentido oposto às tendências demonstradas pelos poderes Judiciário e Legislativo nacionais, não teria o condão de expurgar do ordenamento jurídico brasileiro os efeitos graciosos do pagamento do tributo nos crimes contra a ordem tributária. De qualquer modo, seria mesmo oportuno indagar-se quanto à coerência da revogação do pagamento visto como causa despenalizadora, notadamente tendo em conta os efeitos que se pretenderia atingir com a construção de um ordenamento abstratamente mais repressivo. Necessário refletir se um tratamento penal mais rígido à sonegação fiscal seria de fato meio eficaz e adequado à proteção da chamada arrecadação tributária.