Título: Débitos tributários e distribuição de lucro
Autor: Leonardo Sperb de Paola
Fonte: Valor Econômico, 24/06/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"Em princípio, a distribuição de resultados aos sócios não é feita em prejuízo das obrigações fiscais das empresas"

A Lei nº 11.051, de 2004, trouxe, entre outras disposições, uma mudança no artigo 32 da Lei nº 4.357, de 1964, o qual proíbe a distribuição de resultados (sob a forma de bonificações e participações nos lucros) a sócios e administradores de pessoas jurídicas "enquanto estiverem em débito não garantido para com a União e suas autarquias de previdência e assistência social por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição". Mas o conteúdo da alteração - que substancialmente tratou de estabelecer um limite à multa por infração ao dispositivo, equivalente a 50% do valor distribuído indevidamente ou do débito tributário, o que for menor - em si é menos relevante do que a circunstância de isso pressupor que a norma alterada continuaria a integrar nosso ordenamento jurídico. A afirmação se justifica porque essa norma caíra no esquecimento geral e encontrava-se em total desuso até este momento. Assim, o que o fisco está a indicar, com a alteração de algo que era inoperante, é que pretende, doravante, tornar efetiva tal regra, ou seja, aplicá-la de fato. Porém, o propósito de aplicar a norma vertente num ambiente jurídico bastante modificado desde o advento da Constituição de 1988 poderá, de imediato, esbarrar com princípios constitucionais agasalhados na lei maior e também com um corpo de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que tradicionalmente tem repelido os expedientes indiretos de cobrança de tributos que venham a afetar o regular funcionamento das atividades empresariais e a interferir na sua gestão e nas suas relações internas e externas. De fato, da ponderação dos legítimos interesses fazendários de um lado e da liberdade de iniciativa de outro, chega-se à conclusão de que a proibição em tela revela-se excessiva, desproporcional e, assim, inválida. Isso porque, em princípio, a distribuição de resultados não é feita em prejuízo das obrigações fiscais - muitas das quais podem até ser questionáveis. Para compreender essa afirmação, basta ter em mente que, no cálculo do lucro líquido, devem ser computados todos os passivos tributários, ainda que não tenham sido efetivamente liquidados (o que compete à administração da sociedade fazer). Quer dizer, a base sobre a qual são distribuídos os resultados aos sócios já é líquida de impostos e contribuições devidos pela empresa. E se assim não for, isto é, se os lucros passíveis de distribuição foram total ou parcialmente fictícios, por omissões no seu cálculo, aplicam-se, aí sim, conforme o caso, regras de responsabilização de administradores e acionistas de sociedades anônimas (artigo 201 da Lei das Sociedades Anônimas), e de administradores e sócios das demais sociedades (artigo 1.007 do Código Civil). Portanto, a proibição em exame deixa de ser uma proteção razoável ao interesse do fisco e passa a caracterizar uma forma indireta de coação voltada ao pagamento de tributos. Chegando-se a este ponto, cabe considerar a posição do Supremo sobre restrições e sanções indiretas aplicadas a empresas com débitos fiscais. Nesse particular, fica claro que a corte, de uma forma geral e consistente, tem afastado preceitos de lei que, direta ou indiretamente, limitam o exercício da atividade empresarial, em virtude da pendência, efetiva ou suposta, de obrigações tributárias. Por sinal, tal posição foi cristalizada nas súmulas de número 70 323 e 547. Mais recentemente, foram também invalidadas normas que impediam o contribuinte em débito de obter autorização fiscal para imprimir notas fiscais, do que são exemplos as decisões proferidas no Recurso Extraordinário nº 374.981-RS e no Recurso Extraordinário nº 413.782.

A base sobre a qual são distribuídos os resultados aos sócios já é líquida de impostos e contribuições devidos pela empresa

Ora, por razões similares, a intromissão em assunto interno da empresa e de seus sócios vai muito além do necessário à efetivação das pretensões tributárias e, nesse sentido, também caracteriza mecanismo de coação, passível de censura pelo Supremo. Mas, deixando agora em suspenso o problema da validade jurídica da norma em apreço, convém passar à sua interpretação. A hipótese legal se refere à existência de um débito não garantido (já o artigo 52 da Lei nº 8.212 fala apenas em débito, sem qualificá-lo pela ausência de garantia), sem especificar quais seriam as garantias exigidas para afastar a sua aplicação. Diante dessa omissão, poder-se-ia até avançar a tese de que basta a garantia geral, que é o próprio patrimônio do contribuinte (segundo o artigo 184 do Código Tributário Nacional), cabendo a este apenas demonstrar, se e quando instado a tanto, que esse patrimônio seria o suficiente para suportar as pendências tributárias. Caso se deixe de lado essa idéia, restariam garantias específicas dos mais variados tipos e modalidades previstos na legislação, tais como as garantias reais de bens móveis e imóveis e as garantias fidejussórias, como cauções e fianças). E em que momento a garantia deve estar formalizada? A resposta mais simples seria: antes da própria distribuição de resultados. Todavia, se o propósito da nova lei é evitar que o pagamento aos sócios e administradores prive a sociedade de um patrimônio indispensável a fazer frente aos seus débitos, também parece defensável que, a fim de afastar a sanção, a garantia seja apresentada quando do próprio lançamento do crédito tributário, se acompanhado da imposição da multa. É a interpretação que parece ser mais consentânea com o princípio declinado no artigo 112 do Código Tributário Nacional: "in dubio pro reo" na interpretação e aplicação de penalidades tributárias. Por fim, merecem ainda exame as situações em que o débito se encontra com sua exigibilidade suspensa, em virtude de moratória ou parcelamento. Ora, se esses benefícios foram concedidos, como pode suceder, independentemente de prestação de garantia, e se as condições vêm sendo cumpridas pelo contribuinte, não se vê como o fisco ainda poderia pretender aplicar a multa sobre o débito respectivo. Por outra, se a garantia não foi exigida como condição do parcelamento, por que sua falta, já deferido o benefício, estaria a justificar a imposição da penalidade? Não faria qualquer sentido essa imposição a posteriori.