Título: Sentido e antídotos para a atual crise (3)
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 27/06/2005, Política, p. A6

Em meio a todas as denúncias, não se pode perder de vista qual é o aspecto central da atual crise. O que está em jogo é a forma como a classe política constrói sua carreira no Brasil, tanto no período eleitoral como no momento governativo. A explicação deste fenômeno não se reduz a determinantes culturais, tampouco se trata de um problema vinculado apenas ao caráter dos políticos. Outros países têm ou tiveram bastante corrupção com conformações históricas bem diferentes da nossa. O ponto no qual podemos atuar mais ativamente no curto prazo diz respeito aos incentivos institucionais que levam, hoje, a dois resultados básicos: primeiro, a realização de campanhas extremamente caras e individualizadas (não partidárias), e, segundo, a construção da maioria congressual passa muitas vezes por negociações pontuais e atomizadas com cada parlamentar, na pior das hipóteses, ou, no melhor cenário, com diversas legendas políticas, num processo mais norteado pela distribuição de cargos e verbas do que por agendas compartilhadas pelos partidos. A trajetória típica de carreira da classe política brasileira pode ser sintetizada, então, por um modelo fortemente orientado para ocupar ou nomear postos no Executivo e baseado na necessidade de obter altas somas de recursos para ter sucesso eleitoral, numa campanha feita de forma individualizada. Focando este artigo no primeiro aspecto, pode-se dizer que os políticos têm menos incentivos para fortalecer sua atuação tipicamente legislativa e procuram legendas que facilitem o acesso a cargos e verbas estatais. Daí o intenso e frenético troca-troca partidário, o que pode levar à conformação de realidades partidárias artificiais, bem diferentes das consagradas pelas urnas. Com o incentivo à criação e mudança de partidos, a compra de votos ou deputados é uma possibilidade sempre presente, mas, mesmo que isto não ocorra, o estrago no sistema representativo já foi feito: diante do comportamento flutuante e antipartidário de um número enorme de parlamentares, fica difícil para seus eleitores controlar ou avaliá-los para saber se devem merecer a reeleição. O pior é que até os vários congressistas que adotam uma postura oposta a esta são prejudicados, uma vez que grande parte da população não consegue diferenciar o joio do trigo entre os deputados do Congresso Nacional. As relações entre o Executivo e Legislativo são sobremaneira influenciadas pela fragmentação e flutuação partidárias. Tal realidade é reforçada pela extrema politização do alto escalão da administração pública, tal qual comentei na semana passada, e pela necessidade de conseguir ultramaiorias para aprovar reformas constitucionais, fato que se repetirá por vários presidentes, dado que os principais temas da agenda pública nacional encontram alguma ou total delimitação na Constituição de 1988 - basta pensar nas reformulações dos sistemas previdenciário, trabalhista e judicial que precisarão ser efetuadas nos próximos anos.

Depois da crise, fidelidade partidária é urgente

Não se propõe aqui um modelo majoritário nos moldes da democracia britânica, pois o Brasil, por conta de sua heterogeneidade social e política, precisa de um arcabouço institucional razoavelmente proporcionalista. Contudo, o atual sistema tem mais servido para dificultar o controle dos representantes por seus eleitores e aumentar o custo para montar a coalizão presidencial, em vez de prioritariamente favorecer a representação das minorias ou de processos mais consociativos de decisão. Os projetos de reforma política em discussão no Congresso Nacional tocam em aspectos que devem modificar ou minorar tais problemas. As regras aprovadas na última semana, como a delimitação de uma cláusula de barreira de no mínimo 2% dos votos nacionais e a criação das federações partidárias, já poderão reduzir parte dos males da fragmentação artificial produzida pelo sistema político brasileiro. Mas elas são insuficientes não pela sua abrangência, como apontaram alguns analistas, visto que é necessário evitar uma guinada maior para um indesejável majoritarianismo. A falha destas medidas está em seu descolamento em relação a alterações na politização da administração pública e, sobretudo, à fidelidade partidária. Alguns políticos e analistas temem que a fidelidade partidária crie uma camisa de força ao parlamentar, capaz de reduzir a autonomia de seu mandato. Lembram da época da ditadura, com a forçada existência do famigerado bipartidarismo. Também ressaltam que se houvesse uma regra estrita de pertencimento a partidos, dissidências como o PSDB não poderiam ganhar vida própria. Para eles, basta que, na distribuição dos postos das comissões, tome-se como base a situação pós-eleitoral. Porém, o troca-troca partidário não tem como principal diretriz a distribuição interna do poder no Congresso Nacional - se fosse assim, a Mesa da Câmara teria outro perfil hoje, e os partidos aceitariam a regra segundo a qual o presidente da Casa deve vir necessariamente do maior partido. Troca-se de legenda para barganhar o voto final no plenário, particularmente numa era em que as medidas provisórias e as emendas constitucionais dominam o processo legislativo. Mais do que isso: o foco dos congressistas ao mudar de agremiação é ganhar postos ou recursos do Executivo, muito mais importantes para a maioria deles do que os cargos e posições do Legislativo. Acima de tudo, a atual crise realçou o aspecto mais perverso do troca-troca partidário: a possibilidade de partidos comprarem deputados para fortalecer seu poder de barganha junto ao governo, possivelmente em parceira com o próprio Executivo. Neste sentido, tornou-se urgente a criação de mecanismos de fidelidade partidária para a próxima legislatura. Não é mais apenas uma questão de redução dos custos da montagem da coalizão governista. O que está em jogo, daqui para diante, é a imagem de todos os congressistas, que aparecem agora para a opinião pública e para o eleitor médio, em sua maioria, como políticos que preferiram vender seu mandato a defender idéias partidárias. Se não for dado um forte sinal ao eleitorado de que os congressistas defendem algo além de seu auto-interesse, a renovação do Congresso Nacional será enorme e desastrosa. Especialmente se o financiamento de campanha, tema de nosso último artigo da série, permanecer pouco transparente como é atualmente.