Título: A hipocrisia que prejudica a Bolívia
Autor: Sanchez de Lozada
Fonte: Valor Econômico, 28/06/2005, Brasil, p. A11

Quando protestos cederem, país estará diante dos mesmos problemas econômicos

A Bolívia está à beira de um abismo. Os políticos manipularam as legítimas preocupações da sociedade civil em relação ao uso de riqueza concentrada para fins ilegítimos; mas quando os protestos diminuírem, a Bolívia estará diante dos mesmos problemas econômicos, mas com um eleitorado mais polarizado, instituições comprometidas e uma comunidade investidora mais tensa. Esse é o estado da Bolívia hoje. Era semelhante o clima dois anos atrás, quando manipulações políticas forçaram-me a constar entre os líderes latino-americanos eleitos democraticamente e removidos de seus cargos. Carlos Mesa, o presidente boliviano recentemente deposto, e meu ex-vice-presidente, foram também, agora, incluídos nessa lista de líderes depostos. Esses acontecimentos revelam problemas sistêmicos que transcendem as autoridades eleitas, individualmente. Os problemas são: séculos de exploração da população indígena, crescente tráfico de drogas, manifestações de protesto freqüentes e desestabilizadoras e programas populistas que, em determinado momento, levaram a inflação para mais de 25.000%. Líderes populistas bolivianos construíram suas carreiras canalizando a inquietação econômica em violência política. Como observou "La Razón", um jornal boliviano, esses protestos não são espontâneos. As pessoas foram coagidas a participar de piquetes que continuam a prejudicar a economia e a provocar escassez de alimentos e água, e cobram elevado preço da vida diária dos bolivianos. E líderes políticos continuam a ameaçar com mais bloqueios para pressionar pela estatização do setor energético. Mas a estatização não ajudaria o cidadão boliviano comum, pois expulsaria os próprios investidores que permitem à Bolívia vender seus recursos naturais. A Bolívia ganha mais trabalhando com o investimento estrangeiro do que se distanciando do sistema econômico internacional. Este não é o momento para concretizar outro anseio quixotesco de estatização da indústria petrolífera. Agora, naturalmente, cabe a todas as lideranças bolivianas, inclusive Eduardo Rodriguez, o presidente interino, liderar um debate racional sobre essas questões. Eu apóio seu papel constitucional como líder interino que deverá presidir as novas eleições. Mas Rodriguez não pode fazer progressos sozinho - os bolivianos precisam renunciar às táticas de intimidação política. Em seu discurso inaugural, Rodriguez disse que "insistirá" na afirmação de que os bolivianos que exigem mudanças devem fazê-lo com métodos não-violentos. Essa é uma declaração crucial, porque ele, acertadamente, está consciente de que o progresso boliviano exige o império da lei. Sem isso, Rodriguez poderá sofrer o mesmo destino de seus dois antecessores.

A ONU precisa deflagrar uma investigação independente para determinar que papel Chávez desempenha em assuntos internos bolivianos

A defesa de eleições livres na Bolívia é do interesse de todas as democracias. Os bolivianos suspeitam que governos estrangeiros preocupam-se mais com o gás natural do país do que com o povo. Ao apoiar um processo democrático, outros países poderão minimizar esse temor. O traço populista das cruzadas de políticos bolivianos contra "interferência estrangeira" são também uma grande hipocrisia. A despeito de suas tiradas nacionalistas, Evo Morales, presidente do Sindicato dos Plantadores de Coca e líder do Partido do Movimento Rumo ao Socialismo, emula o populismo manipulador praticado por Fidel Castro, de Cuba, e Hugo Chávez, da Venezuela. Este não é momento para a Bolívia copiar essas economias dirigidas pelo Estado. Não sei se Chávez esteve diretamente envolvido nas recentes agitações na Bolívia. Mas é amplamente sabido que Morales é um grande admirador de Chávez, cuja agenda é fazer avançar a estatização de ativos privados e dividir o hemisfério visando seu próprio ganho político. É simplesmente inaceitável que a comunidade internacional fale em "apoiar a democracia boliviana" enquanto permite a persistência de dúvidas sobre a possível interferência de Chávez. A ONU precisa deflagrar uma investigação independente para determinar que papel, se algum, Chávez está desempenhando em assuntos internos bolivianos. Já é mais que hora de as democracias do Hemisfério Ocidental investigarem e enfrentarem Chávez. Morales também se opôs às propostas de agressiva erradicação da coca. Essa posição contribuiu para a alta de 17% na produção boliviana de coca no ano passado. Não podemos esquecer que coca abundante estimula mais corrupção, violência e decadência da sociedade civil. Por fim, apesar de algumas percepções enganosas alimentadas pela mídia, a maioria dos bolivianos não apóia nem o tráfico de drogas, nem Morales. Apenas 20% dos bolivianos apoiaram o programa de Morales na eleição de 2002; suas táticas baseiam-se unicamente em intimidação. Admito que tanto meu governo como o de meu sucessor não produziram um consenso em nível nacional, mas é por isso que a Bolívia agora necessita de um debate dentro da lei e de democracia - e o fim das agitações