Título: Lições para o Mercosul
Autor: Sérgio Leo
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2004, Brasil, p. A-2

É uma associação difícil, com parceiros de diferentes níveis de desenvolvimento, que criam muitas normas de aplicação frouxa e descumprem obrigações quando os governos consideram muito alto o custo das decisões tomadas com os outros países do bloco. Não, não é o Mercosul. Essa é a atual União Européia, na apresentação do diretor do Instituto Europeu de Pesquisas, Anand Menon, professor de Política Européia da Universidade de Birmingham, em um discreto seminário promovido pela Cepal e pela Embaixada Britânica, semana passada, em São Paulo. Tema do encontro: experiências de integração regional. Debate importante às vésperas da reunião presidencial do Mercosul, em que o tema do aprofundamento da integração deve causar, no mínimo, constrangimentos. O seminário reuniu especialistas, a portas fechadas, para debater as experiências comunitárias da União Européia e da Comunidade Andina, os ajustes necessários na legislação dos países, a importância das chamadas instituições supra-nacionais (como a Comissão Européia, com poderes sobre os Estados-membros) e as estratégias para os mercados de trabalho e sistemas de previdência entre os sócios. Palestras e conclusões dos especialistas convidados podem ser lidos no site www.cepal.org.br. Uma das principais conclusões foi a de que os processos de integração regional, para sobreviver, devem cumprir três condições: a população tem de perceber algum ganho com a associação aos outros países; é preciso um sistema legítimo e eficaz para resolver as controvérsias entre os membros; e é necessário "vontade política", com liderança e propostas claras em cada etapa da integração. Isso se aplica à UE, aos andinos, e, lógico, ao próprio Mercosul. A necessidade de mostrar à população os ganhos com a integração é especialmente desafiadora para países como o Brasil, como lembra o diretor da Cepal no país, Renato Baumann. Os negócios com os sócios do Mercosul representam 10% do Produto Interno Bruto brasileiro. "Fica difícil convencer os outros 90% do PIB a fazer concessões para garantir uma associação que beneficia 10%", comenta o economista, que, no entanto, vê vantagens "geopolíticas" na atuação conjunta do Mercosul. Uma outra conclusão do seminário tem tudo a ver com a discussão que o governo argentino quer promover na reunião presidencial do Mercosul, em Ouro Preto, em dezembro. Trata-se da idéia de que os problemas do bloco podem ser resolvidos com maior supra-nacionalidade, mais instituições e regras que limitem as políticas nacionais dos quatro países que constituem o grupo - os problemas entre os quatro sócios se resolvem com "mais Mercosul".

Há vantagens "geopolíticas" na atuação conjunta

O governo argentino e especialistas também do Brasil defendem que, a exemplo do recém-criado tribunal de revisão do Mercosul, se acelere a criação de instituições supra-nacionais, como se pretende fazer com o Parlamento do Mercosul. A Argentina vai além, como defendeu o ministro da Economia, Roberto Lavagna, ao propor um "código de conduta" para multinacionais para evitar transferências de indústrias entre os países. A idéia, na prática, tenta adaptar aos tempos modernos a frustrada experiência da Comunidade Andina, que, no passado, determinava em que país do bloco se instalariam fábricas de determinado produto industrial. Nem toda a boa vontade do Itamaraty com a Argentina em crise garantiu no governo brasileiro qualquer simpatia a essa proposta, um dos extremos a que podem chegar as idéias de supra-nacionalidade. O seminário da Cepal e da Embaixada britânica, com base nas experiências européia e andina, concluiu que não há relação direta entre supra-nacionalidade e compromisso com a integração. Em alguns países, a Constituição determina que as regras comunitárias são automaticamente transformadas em legislação interna, mas, mesmo assim, há constante descumprimento de determinações. Outros países só adotam regras comunitárias após aprovação de seus Congressos, mas, como na Inglaterra, cumprem as determinações com empenho jesuítico. A experiência européia, principalmente, mostra que deve existir flexibilidade na elaboração das regras comuns. Além das resoluções, decisões obrigatórias a todos os países-membros, o modelo da UE prevê a figura das "diretrizes" da Comissão Européia, normas gerais que cada país adota seguindo critérios que considerar mais adequados às condições nacionais. Para isso, os europeus abandonaram a pretensão de unificar regras entre si, e passaram a adotar o "reconhecimento mútuo" de padrões e normas nacionais, a partir de regras mínimas para todos. "Foi uma grande e positiva ruptura para a Europa", lembra o embaixador britânico no Brasil, Peter Collecott. Com base na história européia, os especialistas defendem também que não vale à pena tentar incorporar normas e leis com forte potencial de rejeição por parte de determinado país, e que é fundamental garantir a participação da sociedade civil na elaboração das normas, para garantir apoio à integração. Apesar da constatação dos especialistas de que a UE tem reduzido cada vez mais o poder da comissão que deveria funcionar como todo-poderoso órgão executivo, não há dúvidas dos benefícios das instituições supra-nacionais, na fiscalização dos integrantes da entidade comunitária e como fator de estabilidade de regras e de decisões coletivas de longo prazo, menos sujeitas a considerações eleitorais do momento. O Mercosul é vantajoso para o Brasil, também como fator de estabilidade de regras, pelo peso que acrescenta ao país nas negociações internacionais, pelo estímulo a certos setores ao comércio regional e pela influência positiva nos países vizinhos, como o Paraguai, potencial gerador de problemas (com tráfico, contrabando, migração). Mas seminários como o da semana passada mostram que, antes de partir para criar instituições e regras obrigatórias no bloco, é preciso decidir aonde se quer chegar e identificar claramente benefícios e custos. A dois meses da reunião de Ouro Preto, esse trabalho mal começou a ser feito.