Título: Especialização regressiva
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 29/06/2005, Opinião, p. A13

O IBGE acaba de divulgar os resultados para 2003 das duas principais pesquisas estruturais sobre a indústria brasileira: a Pesquisa Industrial Anual (PIA) e a Pesquisa de Inovação Tecnológica na Indústria (PINTEC). As duas pesquisas em conjunto permitem traçar um quadro bastante completo da situação de cerca de 130 mil empresas industriais que formam o universo pesquisado no caso da PIA, e de 80 mil no caso da PINTEC. Em primeira análise, os contornos que essas pesquisas desenham formam um quadro pouco animador: a sensação é de que a indústria "andou para trás". De acordo com a PIA 2003, houve diminuição do peso dos setores de maior conteúdo tecnológico na estrutura do valor adicionado da atividade industrial. Tomando-se 1996 como base, a participação dos setores de alta tecnologia no valor da transformação industrial, excluído o de petróleo, recuou de 21,1% para 19,2%. Isso significa que setores como "Informática", "Máquinas e Equipamentos", "Material de Transporte" e "Materiais e Equipamentos Elétricos" não conseguiram nem acompanhar o ritmo médio - e baixo - de expansão do conjunto da indústria no período. Já os setores de média-baixa tecnologia avançaram 3,5 pontos percentuais, passando de 23,3% para 26,8% do valor da transformação industrial. O crescimento desse grupo, que inclui as indústrias "Metalúrgica", "Borracha e Plástico", "Papel e Celulose" e "Minerais Não-Metálicos", dentre outras commodities, confirma o que se temia: está em curso um processo lento mas persistente de especialização regressiva da indústria brasileira. Nesse processo, na contramão do que vem ocorrendo na indústria mundial, são os setores intensivos em recursos naturais, menos dinâmicos na geração de renda e emprego e mais sujeitos aos ciclos de preços e quantidades do comércio internacional, que vêm conseguindo evoluir positivamente. Ao contrário, os setores mais dependentes de estratégias tecnológicas agressivas, que envolvem maiores níveis de investimento e maiores riscos, não conseguem exibir suficiente capacidade de resposta. Por sua vez, a PINTEC 2003, mostra que em relação a 2000, ano da primeira edição da pesquisa, houve uma forte redução do grau de inovação e do esforço tecnológico realizado pela imensa maioria das empresas industriais brasileiras. O volume de gastos em P&D como proporção do faturamento das empresas caiu de 0,6% para 0,5% no período, distanciando ainda mais o Brasil dos padrões internacionais. Em alguns setores, notadamente os de maior intensidade tecnológica, os indicadores de esforço caíram a menos da metade. Esse foi o caso da indústria de máquinas, aparelhos e materiais elétricos, somente para citar o mais drástico, na qual os gastos com P&D caíram de 1,8% do faturamento em 2000 para 0,7% em 2003. Quando se observa o comportamento tecnológico de acordo com o porte das empresas, o quadro é exatamente o mesmo: com exceção das empresas com menos de 49 empregados, em todas as demais faixas de tamanho caíram as taxas de inovação (proporção de empresas que introduziram produtos ou processos novos para o mercado nacional) e, surpreendentemente, também a de imitação (idem mas para produtos ou processos novos para a empresa mas não para o mercado nacional). No segmento de empresas com mais de 500 empregados, por exemplo, as taxas de inovação de produtos e processos caíram de 35,1% e 30,7% em 2000 para 26,7% e 24,1% em 2003, respectivamente.

Só conjuntura não explica por que mais empresas estão gastando menos e menos empresas estão gastando mais com novas tecnologias

O mapa retratado pela PINTEC pode ser sintetizado em uma frase: com relação aos esforços em P&D, mais empresas estão gastando menos e menos empresas estão gastando mais. Isso é exatamente o contrário do que se deseja e sinaliza um futuro pouco promissor para a nossa indústria. Não há dúvida de que o quadro macroeconômico desfavorável - leia-se a recessão de 2003 - explica, em parte, a involução ocorrida. Houvesse sido outro o desempenho global da economia no período, talvez a PINTEC tivesse registrado resultados melhores. Porém, os componentes conjunturais certamente não explicam tudo. Os componentes estruturais, ligados à composição setorial da indústria, ao porte dos empreendimentos e à origem do capital das empresas jogam um papel igualmente relevante. No início desse mês de junho o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicou o livro "Inovações, Padrões Tecnológicos e Desempenho das Firmas Industriais Brasileiras", organizado por João Alberto De Negri e Mario Sergio Salerno. Entre outras análises valiosas, a obra mostra que estratégias competitivas baseadas em inovação são bem sucedidas no Brasil. Isto é, as empresas que inovam e diferenciam produtos faturam mais, pagam maiores salários, têm vantagens competitivas e mais facilidades na hora de exportar. No entanto, o trabalho mostra também que 62% do faturamento do setor industrial no Brasil são originados em empresas que produzem bens padronizados, sem inovações ou diferenciação de produto, quer dizer, são poucas as empresas efetivamente engajadas na busca permanente de inovações. No capítulo do livro que escrevi com o Prof. Frederico Rocha, também do GIC-IE/UFRJ, fizemos uma investigação dos determinantes setoriais do desempenho das empresas industriais brasileiras no período recente. Uma das conclusões a que chegamos é de que é grande a concentração setorial das empresas inovadoras, qualquer que seja o indicador estrutural considerado (freqüência, pessoal ocupado ou receita de vendas). De fato, considerando-se a participação no emprego ou na receita, apenas nas indústrias Eletrônica, Material de Transporte e Material Elétrico as empresas inovadoras são predominantes. Com poucas exceções, os demais setores têm a maior parcela do pessoal ocupado ou das receitas originadas de empresas especializadas em produtos padronizados. É certo que existe um importante espaço para a indústria brasileira avançar na adoção de estratégias mais firmemente baseadas em inovação. O desafio está em disseminar a busca da inovação em todo o tecido industrial. Essa deve ser a essência de um processo de mudança estrutural em direção a produtos com maior conteúdo tecnológico, com maior dinamismo no comércio internacional e com maior capacidade de encadear desenvolvimento das forças produtivas locais