Título: Órgãos da União se enfrentam na Justiça
Autor: Thiago Vitale Jayme
Fonte: Valor Econômico, 29/06/2005, Especial, p. A14

Judiciário AGU cria câmara de conciliação para evitar disputas judiciais da administração pública contra ela mesma

Um estudo feito no início deste ano demonstrou que os maiores usuários do Supremo Tribunal Federal (STF) são órgãos do Poder Executivo federal. Somente a União é responsável por 14,8% do total de ações protocoladas na corte suprema. Em seguida aparecem o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Caixa Econômica Federal (CEF). O elevadíssimo número de ações na Justiça nas quais órgãos do Executivo são parte é reflexo de diversos planos econômicos com mudanças de regras a todo instante, falta de estrutura para responder com velocidade às demandas jurídicas e sistemas processuais carregados de recursos e prazos alongados. Mas uma parcela dos processos em tramitação nas cortes brasileiras tem outra origem: a completa falta de coordenação entre os entes da administração pública. A desorientação dos órgãos tem levado ao Poder Judiciário um número razoável de questões de órgãos da União contra outros órgãos da própria União. Essas ações tornam-se ilógicas por conta da impossibilidade de a União - e o erário - sair vencedora de uma briga judicial contra ela mesma. Por conta disso, a Advocacia-Geral da União (AGU) promete organizar a relação jurídica entre os órgãos da administração pública federal para dar um fim às ações dessa natureza: está em fase de testes um trabalho de mediação feito sob responsabilidade do consultor-geral da União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho. "É comum haver processos que envolvem dois órgãos da administração, e o objetivo é impedir a ida dos órgãos às cortes", afirma. A inquietude frente a esse tipo de ação judicial aumenta quando é feita a conta paga pela União para manter as disputas jurídicas. Um estudo produzido pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) demonstra que cada processo no qual a administração pública é parte custa R$ 2.400,00 por dois anos de tramitação nos tribunais aos cofres do Estado. Nos processos onde há embates da União contra a própria União, o valor pode ser dobrado: R$ 4.800,00. Por outro lado, um levantamento feito pelo Núcleo de Estatística do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a pedido do Valor mostra que 2.999 ações entre 69 entes da administração pública federal chegaram à corte desde 1988. Levando-se em conta as estatísticas da associação dos juízes, o gasto da União somente com os processos que ingressaram no STJ chega a R$ 14,3 milhões. O valor, no entanto, pode ser muito maior, já que apenas uma minoria das ações judiciais chega aos tribunais superiores. Exemplos de brigas jurídicas entre órgãos da União não faltam: basta olhar a lista dos maiores devedores do INSS. Um deles é a Caixa Econômica Federal, que deve R$ 223 milhões ao órgão previdenciário, segundo a lista, atualizada até 31 de março deste ano. A dívida do banco é resultante de 36 autuações do INSS promovidas entre janeiro de 1989 e março de 2004. As motivações do instituto são a suposta ilegalidade na falta de recolhimento de contribuições incidentes sobre o pagamento de abono salarial, auxílio-alimentação, creche e moradia e conversão em uma espécie de licença-prêmio. A Caixa rebate todas as ilegalidades levantadas pelos fiscais do INSS argumentando que tratam-se de indenizações e não de pagamento de vencimentos, e que portanto são isentas de contribuições previdenciárias. Em 2001 e 2002, alguns acordos foram firmados e a instituição financeira pagou parte das pendências, reduzindo a dívida para os atuais R$ 223 milhões. Diante da contestação do banco na Justiça, o INSS concedeu à Caixa uma Certidão Positiva de Débitos com Efeitos de Negativa, documento expedido pelo instituto no dia 26 abril com validade até 25 de julho. "Esse documento comprova haver garantia fornecida pela Caixa para todo o valor que o INSS pleiteia", informou a assessoria da CEF, em nota repassada ao Valor. Apesar dos inúmeros exemplos, não há um levantamento de quantos processos envolvendo dois órgãos do governo federal tramitam no Poder Judiciário brasileiro. Mas alguns dos casos de maior relevância envolvem o INSS. Desde junho de 2003 tramita no Supremo uma ação na qual a autarquia ligada ao Ministério da Previdência pede à Justiça que considere um abono acertado em um acordo coletivo da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) como de natureza salarial, para fins de recolhimento da contribuição previdenciária. Mas os Correios argumentam que o abono é um ganho eventual, sem possibilidade de ser taxado como salário. O desembargador Fábio Bittencourt da Rosa, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, deu ganho de causa ao INSS a partir da jurisprudência da corte que estabelece que incide contribuição previdenciária sobre verbas pagas a partir de acordos coletivos. O caso chegou ao Supremo no dia 30 de setembro de 2004 e está sob a relatoria do ministro Carlos Velloso, mas ainda não há nenhuma conclusão. Em um processo semelhante, o INSS enfrenta o Banco do Brasil na Justiça na tentativa de cobrar da instituição financeira a contribuição previdenciária relativa à participação nos lucros por parte de seus empregados. A ação se arrasta no Poder Judiciário desde fevereiro de 2002 e chegou ao Supremo em agosto do ano passado, após uma decisão também do TRF da 4ª Região favorável ao Banco do Brasil. O caso foi distribuído ao ministro Sepúlveda Pertence e ainda está no aguardo de julgamento. O consultor-geral da União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, diz que alguns desses casos estimularam a ação da AGU em criar a câmara de conciliação para órgãos do governo federal. "Verificamos a necessidade de evitar os litígios da União contra ela mesma", afirma. "E como a AGU tem o controle das ações da maioria dos entes da União, vimos que seria possível organizar essa câmara." Para o ex-advogado-geral da União e hoje ministro do Supremo, Gilmar Mendes, as disputas entre órgãos do governo federal são o resultado de uma crise de gestão. "É a revelação de uma crise organizativa, de falta de controle mínimo da União sobre os atos de seus entes", diz. "Se você pensar bem, os presidentes de todas as autarquias da União cabem dentro de um ônibus. É falta de organização." Essa falta de organização acaba por gerar um gasto público adicional desnecessário e prejudicial ao próprio sistema de defesa dos órgãos públicos. "É um absurdo que em um universo de quatro milhões de processos a serem tratados pela AGU e pouco mais de mil procuradores haja pessoas gastando tempo e dinheiro público para defender entes da União contra outros entres da União", diz Gilmar Mendes.