Título: BNDES e empresas menores poderão ter fatia da "nova Varig"
Autor: Daniel Rittner e Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2004, Brasil, p. A-3

A reestruturação da Varig deverá sair ainda em novembro, com participação do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na composição acionária da empresa e um convite às demais companhias aéreas, incluindo as menores, para entrar no negócio. O pacote virá com um aumento nos preços das passagens aéreas e outras medidas para sanear o setor. Uma delas será a cobrança de uma tarifa suplementar nos preços das principais rotas aéreas, para subsidiar vôos regionais de menor rentabilidade. "Hoje, a oferta de assentos já chegou num nível que está já a requerer um aumento das tarifas", diz, nesta entrevista ao Valor, o ministro da Defesa, José Viegas. Também em novembro o governo anunciará a escolha dos caças que serão comprados para reequipar a Força Aérea Brasileira. Viegas descarta um dos cinco concorrentes - o fabricante russo de aviões Mig - e admite que a decisão "já demorou muito". A semana passada foi a mais difícil para Viegas no governo. Ele saiu desgastado da crise militar provocada pela nova polêmica envolvendo a morte de Vladimir Herzog durante a ditadura. Em Brasília, a substituição de Viegas na reforma ministerial é dada como certa. Veja os principais trechos da entrevista: De que forma o governo socorrerá a Varig? José Viegas: Sem dar dinheiro a fundo perdido nem deixar a Varig acabar sozinha. Temos que operar nesse meio. É uma operação realmente bastante complexa. Valor: Quando sairá a solução? Viegas: A expectativa é, em novembro, estabelecer um pacote sem estatização ou desnacionalização, mas preservando a sua capacidade de operação, o maior número possível de empregos. Valor: Vai ser só para a Varig? Viegas: Existe uma coisa para o setor aéreo como um todo, que é o marco regulatório, que tem instrumentos de ação que nos permitem dosar bem a evolução da oferta e impedir grandes distorções. Ele permitiu que a aviação civil, que quando eu cheguei estava numa péssima situação - guerra de tarifas, concorrência predatória, excesso de oferta, o índice de utilização dos aviões estava em 57%, hoje está em 64% -, estabilizasse. Não houve, nesse período, aumento real das tarifas. O que houve foi um enxugamento da oferta, que era excessiva. Valor: Com o pacote, haverá aumentos agora? Viegas: Hoje, a oferta de assentos já chegou num nível que está já a requerer um aumento das tarifas. Na medida em que o crescimento econômico está trazendo também o aumento da demanda, as companhias têm que estar preparadas para comprar novos aviões. Então, já estamos mudando o viés da regulação e, portanto, permitindo um aumento da oferta. O que falta agora é formalizar o marco regulatório, que hoje é feito por portarias do DAC. Convém que ele tenha uma formalização e uma previsibilidade maior. Temos que pensar na criação da Anac (Agência Nacional da Aviação Civil) e numa série de coisas que ainda não estão plenamente resolvidas. Valor: O quê, por exemplo? Viegas: O preço do combustível, que está muito elevado, a criação de incentivos para a aviação regional, como a aplicação de uma tarifa suplementar nas tarifas das linhas principais para subsidiar os vôos onde o mercado por si só não consegue atender. Valor: O que estava errado no regime anterior? Viegas: Ele era ultra-liberal. Foi um equívoco. Não podemos correr o risco de criar uma situação, como a de 2001 e 2002, em que todas as empresas estavam indo para o buraco por causa da concorrência predatória. O mercado é que regula a oferta e o preço do transporte. Onde o mercado não for capaz de regular, a gente suplementa. Exemplo: nas linhas que, se depender do mercado, não são freqüentadas, a gente tem que dar um jeito. Outro exemplo: o mercado gera uma concorrência predatória. Temos que evitar que ela leve o setor à garra (à deriva). Temos que impedir abuso do poder econômico. O mercado age em tudo o que for possível, mas será 'corrigido' nas áreas em que a correção se impõe. Valor: O BNDES pode vir a ser sócio da nova Varig? Viegas: É perfeitamente possível que isso ocorra. Valor: O governo pode chamar outras companhias, inclusive, as pequenas, para participar da restruturação societária da Varig? Viegas: Pode. A situação da Varig requer investimentos novos. Valor: A escolha dos novos caças da FAB já tem data para acontecer? Viegas: Do ponto de vista técnico, o assunto foi equacionado. Agora depende da decisão do presidente. Isso já demorou muito mais do que eu esperava. Mas estimo que em novembro se chegue a uma definição. Valor: Uma avaliação do governo, divulgada durante a viagem do vice-presidente José Alencar à Rússia, diz que os caças Sukhoi têm uma tecnologia mais avançada e haveria preferência do Palácio do Planalto por eles. Isso é verdade? Viegas: Pessoalmente, não tenho nenhuma preferência. Mas os aviões, em geral, estão no mesmo patamar tecnológico. Valor: O governo já descartou algum das concorrentes? Viegas: Uma das cinco licitantes, a Mig (da Rússia), não chegou a completar todos os requisitos necessários. Valor: Pode-se dizer que a disputa está entre a Sukhoi e o consórcio dos franceses com a Embraer? Viegas: Não. Valor: Há a preocupação em atender à Embraer de alguma forma, por meio de eventuais compensações, caso não seja escolhida? Viegas: O governo tem o propósito de acolher a indústria brasileira na medida do possível. Valor: A compra é parte de um plano de reaparelhamento das Forças Armadas? Viegas: Qualquer que seja a decisão a que o presidente chegue, haverá sempre a necessidade de substituir os atuais Mirage por aviões provisórios, até o momento em que tivermos os caças definitivos. A FAB não pode ficar carente dos aviões da categoria dos Mirage. Há um programa de recuperação dos aviões AMX, produzidos pelo Brasil e pela Itália. Eles precisam de modernização dos painéis, turbinas novas. Essa é, sim, uma das etapas de reaparelhamento da FAB. Os F-5 têm um processo semelhante de renovação. Os Super Tucanos, que estão sendo fabricados pela Embraer, também serão progressivamente entregues e incorporados à frota. Há um programa intenso de reequipamento. Valor: E nas outras Forças? Viegas: A essência do reaparelhamento da Marinha é o programa de construção do submarino Ticuna, de corvetas e de fragatas. No Exército, temos planos de fabricação e compra de novos blindados. Muitos estão envelhecidos e têm de ser substituídos. Além disso, o Exército está deslocando novas brigadas. Há uma em São Gabriel da Cachoeira (AM), que já foi instalada. E uma brigada de operações especiais, em Goiânia, que está em estágio de implantação. Haverá ainda reforço dos batalhões de Polícia do Exército. Temos tido orçamento muito restrito, mas graças à sensibilidade do governo já melhoramos muito.

Hoje, a oferta de assentos chegou num nível que está já a requerer um aumento das tarifas"

Valor: Por que reaparelhar as Forças Armadas? Viegas: O conceito é recuperar minimamente os equipamentos, que se encontram em idade muito avançada. Tanto os navios da Marinha quanto os veículos do Exército e os aviões da FAB têm idade média superior a 20 anos. Às vezes, até mais de 30 anos. A taxa de rendimento é inferior, em muitos casos, a 50%. Valor: O governo Lula vai gastar mais na área militar? Viegas: No começo de 2003, quando houve o contingenciamento, ficamos com R$ 3,1 bilhões para custeio e investimentos. Este ano, até outubro, estamos com R$ 5,2 bilhões. Espero avançar mais. Valor: Do ponto de vista histórico, já houve uma recuperação? Viegas: Parcialmente. Os melhores anos foram na década de 80. Nos anos 90, houve uma queda gradual, mas a média daqueles anos ainda é superior à de hoje. Valor: Qual é a prioridade do governo na área de defesa? Viegas: A Amazônia. Ela tem mais de 50% do território nacional e é escassamente povoada. Faz fronteira com vários países, nem todos em situação de estabilidade. A situação na Colômbia exige uma necessária cautela da nossa parte para que não haja uma contaminação das milícias para o território brasileiro. Valor: Há ameaça de avanço das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc) na Amazônia? Viegas: Não temos tido manifestações concretas disso. Há informes de que às vezes elas chegam próximo. Temos pelotões em vários pontos na fronteira com a Colômbia, mas não sentimos que haja qualquer risco de conflito. Mas, justamente para que não haja, temos que tomar todas as precauções. É por isso que transferimos a brigada de Niterói para São Gabriel da Cachoeira. Hoje temos cerca de 25 mil homens na Amazônia. É mais do que há dez ou 20 anos. Valor: Existe estimativa de qual seria o número de homens necessário para proteger a Amazônia? Viegas: Depende do grau de realismo que se queira adotar. A partir do efetivo que temos atualmente, creio que um incremento de 10% já daria condições razoáveis de segurança interna, do ponto de vista numérico. Valor: Haverá reforço em 2005? Viegas: Isso será feito de acordo com a dotação orçamentária. A promessa inicial é de R$ 5,2 bilhões. Mas como já chegamos a esse valor em outubro, temos a expectativa de que em 2005 ganharemos uma dotação superior. Valor: O que pretende o governo brasileiro quando assumir, pela primeira vez, a responsabilidade de comandar as tropas de paz da ONU no Haiti? Viegas: Em primeiro lugar, demonstrar a capacidade de atuação positiva em defesa da paz e da segurança internacionais. Em segundo, mostrar uma atitude de coerência em relação à prioridade que o governo brasileiro sabidamente dá à América Latina. Em terceiro, o Brasil fica feliz de ver que essa ação é apoiada com tanta força pelos nossos vizinhos. É uma demonstração clara da capacidade de ação conjugada, coerente e positiva da América do Sul em defesa da paz e da segurança internacionais. Valor: O sr. não teme pela segurança das tropas brasileiras? Viegas: O Haiti é um país pobre, quase que totalmente carente de recursos, muito pouco dotado de infra-estrutura física e de serviços. É uma população tão empobrecida, com um nível de desemprego tão grande, que isso pode facilmente transformar-se em manifestações de rua, em inquietação social. Isso tem ocorrido, inclusive com conotações políticas, porque é um país com uma história muito instável. Não quero dizer que não há riscos. O risco é inerente à atividade militar, mas acreditamos que ele é relativamente baixo. Valor: Qual será a duração da missão? Viegas: A resolução da ONU deve ser renovada a cada seis meses. Consideramos que o ciclo normal é até a realização das eleições, inclusive, as eleições. Talvez, mais um ano. Valor: Sem a diminuição dos problemas que ainda existem, não há o risco de as tropas deixarem o país e a instabilidade no Haiti continuar? Viegas: Esse risco existe na medida em que a comunidade internacional não consiga satisfazer os compromissos que ela própria criou. Estamos fazendo tudo o que prometemos. Os nossos vizinhos também. Agora, é preciso que outros países, a ONU e o governo haitiano façam a sua parte. Valor: Isso foi tratado com o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, em sua visita recente? Viegas: Foi, sobretudo pelo meu colega Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores). Estamos enviando um emissário, Ricardo Seintefus, e vamos ajudar na coordenação internacional. O presidente Lula está designando o Marco Aurélio Garcia (assessor internacional do Palácio do Planalto), com essa mesma função, para que tenhamos pessoas ágeis para coordenar a ação internacional. Valor: O que é preciso fazer para levar estabilidade ao Haiti? Viegas: O esforço de estabilização e de preparação para a realização de eleições, com a restauração plena da democracia, requer três vertentes: uma militar - onde o Brasil está atuando de forma mais visível -, uma vertente de atuação policial e outra de ajuda para o desenvolvimento econômico e social do país. Essa última vertente é indispensável e ocorre simultaneamente aos esforços de estabilização policial e militar. Se não fizermos isso, não vencemos essa grande batalha. Valor: Os países ricos não estão ajudando. Viegas: Tem havido uma demora muito grande na chegada da ajuda internacional. Embora tenha havido em julho deste ano, em Washington, uma reunião de doadores que recolheu mais de US$ 1 bilhão para fazer projetos no Haiti, esse dinheiro não chegou ainda porque não há um entendimento de como operá-lo localmente. Valor: Por quê? Viegas: A própria ONU não se sente equipada o suficiente para administrar esses recursos. Não há um bom entendimento sobre como fazer chegar as verbas. Estamos preocupados com isso e pedimos que o dinheiro chegue efetivamente ao Haiti. O problema de saneamento e da remoção do lixo é premente. A restauração da rede elétrica pode ser feita com custos relativamente baixos. Também a construção de estradas, uma vez que a rede de rodovias praticamente se dissolveu. Essas três questões são imediatas, podem ser feitas sem maiores delongas. É preciso que se gere emprego no Haiti. Há regiões onde o desemprego chega a 80%. Isso é uma fonte de delinqüência, instabilidade e conflito. Valor: Por que há uma participação tão grande dos países sul-americanos? Viegas: Até agora, chegaram 3.100 homens, dos quais, 90% são sul-americanos. É a primeira vez que isso acontece. A designação do Brasil como líder das forças de paz deu confiança aos nossos vizinhos para agir em consonância conosco. Sem pedirmos nada, espontaneamente, houve envio de tropas da Argentina, Uruguai e do Chile. O Peru vai mandar e houve um pedido do Paraguai. Estamos esperando mais dois mil soldados, vindos do Nepal, Sri Lanka, Jordânia, Espanha, Marrocos e Guatemala, totalizando 5.100 homens. Valor: É suficiente? Viegas: Ainda é menos do que o total de 6.500 homens previsto pela ONU.