Título: O velho e o novo nas eleições de 2004
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2004, POlítica, p. A-4

O poder local no Brasil sempre foi interpretado como a fonte do atraso de nosso sistema político, nascedouro das práticas coronelistas, clientelistas e afins. Após mais uma eleição municipal, a sexta desde a redemocratização, fica a pergunta: o velho modelo foi sepultado por uma nova maneira de se fazer política? É muito difícil responder simplesmente de forma positiva ou negativa esta questão. Isto porque ela contém, implicitamente, uma falsa suposição: a de que seja possível criar um sistema perfeito, capaz de derrotar todos os antigos vícios ou evitar a criação de novos. Até nos países mais desenvolvidos persistem, em maior ou menor grau, formas perversas de se fazer política. Na atual disputa presidencial americana, em vários Estados há exemplos de uso indevido do poder político, alguns deles com métodos muito parecidos aos utilizados no século 19. O fato é que a democracia permite denunciar e combater os males da política, mas a luta pelo aperfeiçoamento da política não tem fim. O velho modelo pode sempre ser "modernizado", ganhando roupagem nova que esconde seus defeitos, tal qual o retrato de Dorian Gray. Como no livro de Oscar Wilde, o regime democrático oferece instrumentos para desvendar esta farsa, só que, mesmo assim, novas máscaras e plásticas podem ser criadas. O que cabe aos cientistas políticos, em primeiro lugar, é entender o processo político, contextualizando seus avanços e problemas, para depois, numa reflexão mais normativa, enfronhar-se numa luta sem fim pela descoberta de remédios contra antigos e novos males. A eleição municipal de 2004 trouxe boas notícias, mas também foi portadora de práticas atrasadas, cujos agentes por vezes têm sabido se adaptar às mudanças de época. Entre as boas novas, a derrota de caciques políticos que pareciam invencíveis foi a mais alvissareira. Os declínios de Maluf e de ACM, por exemplo, revelam que mesmo o eleitorado mais fiel pode perceber o desgaste de determinadas fórmulas e mudar de rumo. Aliás, com a prática contínua da democracia, muitos cidadãos brasileiros estão se tornando cada vez mais exigentes e certos políticos não se deram conta disso, pois continuam se portando como verdadeiros coronéis do voto. A esta lista positiva, acrescenta-se outro fato ocorrido em muitas capitais e outras cidades grandes. Trata-se da avaliação dos políticos pelas suas propostas de governo e por sua experiência administrativa pregressa, dando cada vez menos importância às críticas extemporâneas à eleição. Neste sentido, quem procurou encontrar defeitos de seus adversários para além do que estava em jogo no pleito municipal, normalmente se deu mal.

Eleitores estão mais exigentes com políticos

Mas o eleitorado dos grandes centros não apenas observou com mais atenção as propostas e a experiência administrativa. Também procurou votar sinalizando quais políticas deveriam continuar, independentemente de optar ou não pelo candidato da situação. Caso se confirme a vitória da oposição em São Paulo ou em Porto Alegre, os vencedores não poderão paralisar programas que vêm sendo considerados bem sucedidos pela população, como é o caso dos CEUS e do Bilhete Único, na capital paulista, e do Orçamento Participativo, em território porto-alegrense. A distinção entre o velho e o novo nem sempre é determinada pela pretensa modernidade dos meios utilizados. Por exemplo, o marketing político ganhou uma força desmesurada no mundo contemporâneo e, particularmente, no Brasil. O uso das técnicas de comunicação de massas é um imperativo da democracia de nossos dias e pode ser até um bom mecanismo de informação e debate, ajudando o eleitor a definir suas posições com mais clareza. Em nossas últimas eleições, porém, a política estava se subordinando aos "marqueteiros", numa inversão descabida de papéis. O responsável pela comunicação política tinha virado um mago, capaz não só de eleger o candidato, mas também de transformar completamente a sua imagem de acordo com o que a população desejava de um governante. A eleição de Pitta seguiu este modelo e o desastre que se seguiu é sobejamente conhecido. A eleição municipal de 2004, pelo menos em muitas grandes cidades, representou um avanço contra o uso desmesurado do marketing político. Imagens que soaram falsas, a reconstrução artificial dos adversários e outros truques foram vistos de forma mais crítica pela população. Não que a boa comunicação não tenha sido importante, mas sua força esteve vinculada a um projeto político bem formulado. Não houve só boas novas, contudo. Dois fenômenos se destacaram pelo lado negativo, repetindo um padrão tradicional que precisa ser combatido. O primeiro se refere às eleições para vereador, com pouca atratividade para o eleitor e para a mídia. As figuras exóticas, o clientelismo distritalizado e a fraqueza dos partidos manifestaram-se em 2004 como em outras épocas, talvez de uma forma mais perversa, uma vez que um grande contingente de cidadãos, principalmente nos grandes centros, atuou agora de outro modo na escolha de seus candidatos a prefeito. Como será o dia seguinte da eleição na relação entre o Executivo e o Legislativo, dada a dupla forma de legitimidade que os constituiu? Sem querer ser pessimista, os avanços na definição do governante podem ser enfraquecidos pelo relacionamento clientelista, quando não corrupto, que pode ocorrer mesmo nos municípios mais desenvolvidos do país. O mais deprimente foi a continuidade de líderes e práticas clientelistas, sobretudo nos rincões do país, mas também, e de forma mais perversa, com a participação de políticos com expressão nacional. O comportamento do casal Garotinho em Nova Iguaçu e em Campos precisaria ser duramente combatido pela sociedade e, especialmente, pela Justiça Eleitoral. Tomara que a derrota de seus candidatos sirva como lição, não apenas para os dias de hoje, mas para os que concorrerem às eleições municipais de 2008.