Título: Esquerda do Uruguai quer seguir modelo econômico de Lula
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2004, Internacional, p. A-9

O senador e economista Danilo Astori, 64, futuro ministro da Economia do Uruguai em uma eventual vitória da Frente Ampla nas eleições de 31 de outubro, afirma que a experiência do governo Lula mostrou aos uruguaios que a esquerda pode chegar ao poder e fazer mudanças sem sobressaltos. Caso vença, a Frente Ampla aplicará receituário ortodoxo em matéria de política econômica e terá como prioridade o aumento do investimento no país. O programa poderia causar surpresa para uma coalizão de partidos de esquerda criada em 1971 e que agrupa diversas tendências, dos moderados aos radicais, representados pelos Tupamaros (movimento guerrilheiro que lutou contra a ditadura militar no país (1973 a 1984). Mas Astori considera que houve uma "evolução ideológica" da esquerda, relacionada ao aprendizado da realidade: "O pior, para um ator de esquerda, é pretender mudar uma realidade que desconhece", disse Astori ao Valor, por telefone, desde seu gabinete no Congresso, em Montevidéu. Ele admitiu que dissidências deverão ocorrer caso a Frente Ampla chegue ao poder, mas serão "minoritárias", previu. A seguir os principais trechos da entrevista. Valor: Se chegar ao poder, a Frente Ampla aplicará receituário ortodoxo em matéria de política macroeconômica? Danilo Astori: Questões como o controle da inflação, o superávit primário e o cumprimento das obrigações com os organismos financeiros internacionais não são propostas exclusivas da direita. Essas medidas podem ser aplicadas também pela esquerda. O problema é como fazer. A esquerda tem que controlar a inflação. A questão é que instrumento se utiliza para fazê-lo. A esquerda também pode conseguir superávit primário, mas a questão é saber com que sistema tributário e com qual redução do gasto público. Talvez cheguemos ao mesmos objetivos por caminhos distintos. Valor: Mas a crítica da esquerda não é de que acordos com o Fundo Monetário Internacional e a definição de superávits primários limitam a capacidade de investimento? Astori: O problema é que a dívida pública e o condicionamento dos organismos financeiros internacionais são um fato real que não pode ser ignorado. Se o fizéssemos, talvez por muito tempo não conseguiríamos investir em educação, saúde. Sem opinar sobre o caso do Brasil, penso que não é ruim assegurar superávit primário que permita operar com tranqüilidade quando venha a fase negativa do ciclo. Penso que é preciso praticar uma conduta fiscal anticíclica. Valor: O Partido Nacional (Blanco) avalia que houve uma mudança de discurso da esquerda no Uruguai, que teria se aproximando do centro. O sr. concorda? Astori: Creio que há uma evolução ideológica na esquerda relacionada à leitura e ao aprendizado da realidade. A realidade do Uruguai, da região e do mundo mudaram. E o pior que pode acontecer com um ator de esquerda é pretender mudar uma realidade que desconhece. Não há deslocamento para o centro. Nossa proposta segue sendo de esquerda porque não renunciamos a nenhum princípio e objetivo. Mas temos claro que as mudanças da realidade nos obrigam a definir caminhos diferentes daqueles do passado. Valor: Quais são as razões que explicam o favoritismo da esquerda nas eleições do dia 31? Astori: Acredito que é a culminação de um processo de décadas. A sociedade uruguaia vem buscando caminhos alternativos aos dos partidos históricos. Ao longo do processo, registraram-se altos e baixos, mas os períodos bons têm sido cada vez mais curtos e os ruins, cada vez mais profundos e duradouros. Isso explica porque aumentaram a pobreza e a desigualdade social no Uruguai. À medida que as pessoas esperaram mudanças que não ocorreram, houve perda da confiança nos partidos históricos e, ao mesmo tempo, aumentou a esperança na proposta da esquerda, que cresce há pelo menos 30 anos no país. Esse período foi marcado pela queda permanente dos partidos históricos e a ascenção da esquerda. Nessa etapa estamos hoje e por isso a esquerda tem chances de chegar ao governo. Também tiveram papel relevante fatores internacionais. A experiência do governo Lula, no Brasil, contribuiu como fator de impulso adicional porque Lula mostrou que a esquerda pode chegar ao governo e começar a transformar o país em cenário de estabilidade e moderação, o que é levado em conta pelos eleitores uruguaios. Valor: A Frente Ampla explorou na campanha o apoio de Lula a Tabare Vázquez [o candidato da coalizão à Presidência]. Em que medida esse apoio pode ser decisivo? Astori: Mais que o apoio, conta a experiência que as pessoas vêem no governo Lula. O Brasil está tendo uma experiência formidável. Lula chegou à frente de um governo de esquerda em um país que precisa de transformações profundas e dedica toda a primeira fase do mandato a ganhar confiança e credibilidade, a dirigir a política econômica com muito cuidado usando ferramentas fundamentais em matéria fiscal, monetária e cambial. Isso é o que demonstra que a esquerda pode chegar ao governo e fazer mudanças dentro de um cenário de ordenamento e sem traumas, sem desestabilização. Valor: No Brasil, parte do PT e da esquerda se opuseram à ortodoxia de Lula na política econômica. Há risco de que ocorra algo semelhante no Uruguai? Astori: Podem haver dissidências no futuro, sem dúvida, mas creio que serão minoritárias. Grande parte da esquerda uruguaia irá concordar em seguir caminho similar [ao do Brasil] e irá apoiar o governo. Valor: Quais são as mudanças propostas pela Frente Ampla em seu programa de governo? Astori: Do ponto de vista estrutural, as mudanças mais importantes estão na produção e no investimento. Queremos formular e implementar um modelo de especialização produtiva do país com altos níveis de qualidade, que aponte às atividades nas quais o país têm vantagens competitivas. Falo do agronegócio, dos serviços e da produção de inteligência. Também queremos transformar o sistema financeiro de modo a articulá-lo ao financiamento do setor produtivo. O Uruguai tem um sistema financeiro muito focado na especulação. Queremos fazer a reforma do Estado, aumentando o controle social da gestão pública, e preparar as empresas públicas para a concorrência. Um instrumento para isso é associar as estatais a capitais do exterior, públicos ou privados. Outra proposta é fazer uma reforma tributária orientada pelos critérios de justiça, eficiência e coerência com o apoio ao investimento produtivo. Também será preciso definir política exterior clara, que signifique apoio ao Mercosul como base da inserção internacional do país. Outro ponto será fortalecer as políticas sociais em matéria de saúde, seguridade social e habitação e, finalmente, dar prioridade à formação educacional e ao desenvolvimento científico e tecnológico. Valor: Quais serão as suas primeiras medidas como ministro da Economia em caso de vitória? Astori: Colocar em funcionamento as reformas estruturais e um plano social de emergência para atender a situação das pessoas mais pobres. E começar a focar todos os instrumentos da política econômica para o objetivo básico e fundamental, que é o aumento do investimento.