Título: O que está acontecendo com o auxílio-doença?
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 25/10/2004, Opinião, p. A-11

O que está acontecendo com as despesas previdenciárias do auxílio-doença? Uma das primeiras coisas que os economistas devem ensinar aos estagiários é que, na macroeconomia em geral, as variáveis reais agregadas não costumam ter variações de dois dígitos: se algo está aumentando 30% ou 40%, provavelmente o dado está errado. Confesso que a primeira vez que coloquei a lente de aumento nas informações mais detalhadas da evolução recente dos benefícios previdenciários, desconfiei que houvesse alguma falha do estagiário. Para infelicidade do Fisco, os dados estavam certos: o volume de auxílios-doença aumentou 48% em 2002; 28% em 2003; e está aumentando a uma taxa anualizada de 26% em 2004. É evidente que o Tesouro Nacional está gastando dinheiro demais com essa rubrica, pois o número de doentes no Brasil hoje não é de mais de 2,5 vezes o número de 2000. A imprensa noticiou que o governo está tomando medidas em relação ao tema. Nada mais correto, como veremos. O número de auxílios-doença era de 2,9% do total de benefícios previdenciários emitidos em dezembro de 2000 e é de 6,6% desse universo, pela última informação disponível. Em termos de número de indivíduos, passou de menos de 500 mil pessoas, em 2000, para quase 1,3 milhão hoje. Alguém acredita que o número de doentes aumentou nessa proporção? Além disso, historicamente, esse é um benefício proporcionalmente caro: em 2003, enquanto as aposentadorias, na média, eram de 1,9 salário mínimos (SM) "per capita" e as pensões, de 1,5 SM, os indivíduos beneficiados pelo auxílio-doença recebiam, em média, 2,3 SM por pessoa. Isso significa que o peso dessa despesa no total do gasto é maior que a participação no número de benefícios, o que acentua a dimensão do problema em questão (para maiores detalhes, ver "O aumento das despesas do INSS com auxílio-doença", Boletim de Conjuntura, Ipea, setembro 2004, nota técnica, em co-autoria com o ex-ministro da Previdência José Cechin, www.ipea.gov.br). É razoável inferir que há um problema com a qualidade das perícias, ligado a uma questão de incentivos deficientes. Ressalte-se que não se está falando de esquemas de fraude em grande escala, adotados para burlar a Previdência Social, e sim de uma multiplicidade de ações individuais de pessoas que se apresentam no INSS com algum problema de saúde. Um indivíduo com hepatite, que terá de passar meses em cama até se recuperar, tem pleno direito ao auxílio-doença. Já uma pessoa que ficou dois dias com 38 graus de febre não tem direito algum. No meio, há "n" situações intermediárias, para as quais a concessão do benefício depende da avaliação do médico credenciado.

O volume de benefícios concedidos aumentou 48% em 2002, 28% em 2003, e está aumentando a uma taxa anualizada de 26% em 2004

Como foi dito no texto acima citado, "a suspensão do auxílio-doença por incapacidade, após o período normal de seu uso, tem-se revelado um constante desafio ao gerenciamento desses benefícios ... Cabe indagar se não estaria havendo maior tolerância na avaliação médica da incapacidade ... O INSS conta atualmente com poucos peritos, que por sua vez, em muitos casos, já preenchem as condições para a sua própria aposentadoria ... Em razão da escassez de peritos próprios, o INSS passou a contar com número cada vez maior de peritos credenciados. O credenciado, porém, pode por vezes se comover com a situação financeira do paciente e adotar atitude benevolente, já que as finanças do INSS não são parte de suas preocupações" (pág. 89). Não é difícil tentar especular acerca da essência do problema. Imagine o leitor que a sua empregada fica doente, falta e pede o abono de um dia. Talvez a sua benevolência o leve a aceitar o pedido. Se ela faltar 15 dias e pedir o abono de meio mês, porém, provavelmente o leitor irá informar a ela que a benevolência tem um limite e que o pedido foi recusado. Nada mais natural, porque se há doenças que justificam a concessão de um auxílio, poucas coisas machucam como a dor no bolso. A decisão, porém, é diferente quando o bolso é de terceiros, no caso a "Viúva" (o Tesouro Nacional). Recusar o pedido de uma pessoa doente ("ma non troppo") é sempre meio difícil, mas pode-se apostar que as chances de o médico ser "durão" diminuem se a conta vier a ser paga pelo INSS e se a sua remuneração for relativamente indiferente à decisão tomada. Por que um agente de seguro é duro na hora de pagar e verifica cinco vezes os detalhes da ocorrência antes de assinar o cheque? Porque sabe muito bem que se o seu supervisor descobrir que as evidências que justificariam o pagamento eram fracas, corre o risco de ficar desempregado. Já no caso em questão, se o sistema de aferição da validade da perícia é frágil - por falta de pessoal - a decisão racional de quem assina a concessão do benefício vai ser sempre a de ceder diante do paciente. Note o leitor que não há bandidos na história, mas apenas uma pessoa "mezzo" doente; um médico estressado que atende 25 pessoas por dia sem ter um supervisor "chato" por perto para indagá-lo acerca da sua decisão; e uma "mãe" (o Tesouro) que paga todos os cheques que lhe apresentam, porque se não pagar a mídia fará um escândalo contra a "insensibilidade tecnocrática daqueles que se recusam a ajudar às pessoas doentes". Se alguém não bancar o "durão", a questão não será resolvida! Perícia, supervisão e incentivos são as três palavras mágicas para atacar o problema.