Título: Sentido e antídotos para a atual crise (4)
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 04/07/2005, Políticos, p. A6

A avalanche de denúncias resultou na criação de um quebra-cabeça cujas peças ainda não foram completamente descobertas. Mesmo assim, o elo entre as partes tem sido, quase sempre, o financiamento das campanhas políticas. O próprio acusador-mor, o deputado Roberto Jefferson, confirmou o seu crime eleitoral, agravado -como não tem notado a imprensa -por esconder os recursos que diz ter recebido de forma ilícita para bancar os candidatos do PTB na última eleição . O mais grave é que um réu confesso -título, aliás, de outra boa música a se juntar à audição de "Nervos de Aço" - ameaça contar tudo o que sabe sobre as irregularidades nas campanhas de seus pares. Cria-se uma situação na qual, aparentemente, os congressistas se vêem unidos por um pecado original e, desse modo, tornam-se perigosamente cúmplices naquilo que está por trás dos escândalos que abalam atualmente a República. Daí pode surgir a pior sensação possível na sociedade : a de que julgadores e julgados estão no mesmo barco. É para reagir contra a construção desta imagem negativa do Congresso Nacional que a elite da classe política deve repensar os padrões vigentes de financiamento eleitoral. Neste sentido, a proposta de financiamento público das campanhas ganhou força nos últimos tempos. Cabe lembrar que os partidos já recebem, direta ou indiretamente, recursos públicos para sua atuação política, seja pela via do fundo partidário, seja com o uso da TV e do rádio no chamado Horário Eleitoral Gratuito. Embora possam ser apontados problemas pontuais nestes dois tipos de auxílio estatal, eles têm sido, no geral, salutares. Tornar exclusivamente público o financiamento das campanhas, contudo, é bastante temerário. Em primeiro lugar, porque não se deve podar o direito dos indivíduos contribuírem, de forma legal e transparente, para causas nas quais acreditam. Seria uma forma de afastar ainda mais os cidadãos e organizações da vida política do país. Fortalecer os partidos, antes de tudo, é reforçar seus laços com a sociedade. Questões como o intenso troca-troca partidário, a coligação em eleição proporcional e a ausência de verdadeiras prévias nas legendas tornam difícil o controle da representação referendada nas urnas. Agora, proibir que as pessoas ou empresas doem recursos aos partidos ou candidatos preferidos não levará, em si, ao aumento da transparência das campanhas. Tendo em conta o argumento acima, a proposta de financiamento público das campanhas pode significar um aumento expressivo das transferências de recursos orçamentários aos partidos e candidatos, mantendo-se a possibilidade, em menor monta, da contribuição de pessoas físicas e jurídicas. Mesmo neste cenário mais adequado para a reforma, é preciso não cair na crença ingênua de que o predomínio do financiamento público vai acabar com o caixa dois, personagem principal das investigações congressuais atuais e ator recorrente das CPIs pretéritas. Há dois outros antídotos mais eficazes contra este mal: a reforma da administração pública, tornando-a mais profissionalizada e controlada pela sociedade, e a prestação de contas ao longo da campanha, e não ao seu término.

Solução é prestar contas toda semana

O primeiro aspecto foi bastante discutido nesta série de artigos e acrescento aqui apenas mais um argumento. O preocupante nos escândalos é a relação direta entre o financiamento e a obtenção de vantagens em licitações, geralmente em áreas com pouco controle público. De modo que mudanças na administração pública, em prol de sua maior accountability, tenderiam a reduzir o peso da corrupção vinculada ao caixa dois. O maior desafio está em conseguir, da melhor maneira possível, a instauração de mecanismos de prestação de contas ao longo da campanha, para que o eleitor e a imprensa possam acompanhar - e avaliar - os interesses que apóiam os candidatos. Numa fiscalização mais cotidiana, organizações da sociedade civil, a mídia e a Justiça Eleitoral poderão também cotejar o que está sendo apresentado como receita de contribuições com os gastos efetivos e suas manifestações exteriores de abundância de recursos. Sabe-se que a maior dificuldade desta proposta está no caráter extremamente individualizado da competição eleitoral no Brasil, especialmente no que tange aos cargos legislativos. A Justiça Eleitoral não tem estrutura, hoje, para acompanhar detidamente todas as candidaturas. Como resposta a isso, alguns propõem instrumentos como a lista partidária fechada, algo que, no atual contexto, não possibilitará a aproximação dos eleitores junto aos partidos. Melhor seria obrigar todos os concorrentes a prestar semanalmente suas contas pela internet, e transferir recursos públicos para viabilizar este processo, seja dando dinheiro às agremiações políticas para que elas garantam tais condições a todos os seus candidatos, seja garantindo aos mais pobres o acesso a terminais de computador que possam ser consultados regularmente. Isto vai significar aumento do financiamento público de campanha, sem podar os direitos individuais e nem cair na crença ingênua que as verbas estatais seriam suficientes para pagar as contas dos candidatos pelo país afora. É possível aprender com as lições da atual crise propondo novas formas de se fazer política no país, como se propôs nesta série de artigos. Não se trata de criar uma tábua de salvação para o atual governo - que, de resto, depende de outras coisas que vão além da reforma política. O importante é criar instrumentos que reduzam a possibilidade e, sobretudo, a intensidade dos problemas revelados pelo nosso Macunaíma, Roberto Jefferson, o "herói sem caráter". Reformar o presidencialismo de coalizão brasileiro é uma tarefa para assegurar condições melhores aos próximos governantes, em busca de eficiência administrativa, menor custo de relacionamento entre o Executivo e o Legislativo e de maior controle dos políticos pelos cidadãos.