Título: O sertão vai virar mar
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 06/07/2005, Brasil, p. A11

O"calcanhar de Aquiles" do Nordeste está no suprimento de águas para a rede urbana, novas indústrias e, obviamente, para a agricultura. Aqui reside a principal justificativa do projeto de integração das bacias ao Rio São Francisco. A transposição exigirá menos de R$ 5 bilhões em três anos. Deverão ser recursos orçamentários. Terá início com a engenharia militar construindo 8 km dos canais de alimentação, a partir de Floresta e Cabrobó (PE). A excelência do Instituto Militar de Engenharia garante a qualidade. Depois, serão licitados 14 lotes. Em conjunto, o eixo Norte (402 km) utilizará as calhas dos rios Brígida, Apodi, Jaguaribe, Salgado, Peixe, Piranhas-Açu. Serão 26 pequenos e grandes açudes interligados. No eixo Leste, um canal de 220 km desembocará na calha do Paraíba, conectando dois açudes grandes e nove pequenos. A transposição de 1% de águas do Velho Chico, variando até 4,5 % (nas cheias de Sobradinho) fornecerá boa água a 10 milhões de famílias e resolverá questões de abastecimento de cidades como Fortaleza, Caruaru, Mossoró e Campina Grande. Simultaneamente, uma política inteligente de manejo de águas, que abandone a idéia de estoques pela de fluxo racional, permitirá irrigar as manchas férteis ao longo dos vales perenizados. Estas áreas terão que ser desapropriadas. Além da transposição, para o povo rural haverá um reforço com micro-soluções testadas - cisternas, mandalas, poços dessalinizados, barragens de subsolo etc. Na pequena propriedade irrigada, a chave é a agricultura sofisticada. A produção de alimentos orgânicos é interessante para o Nordeste pois evita a contaminação das águas escassas com agrotóxicos. O mercado mundial de alimentos orgânicos é de US$ 26,5 bilhões, e no Brasil está no início - US$100 milhões. O Nordeste já produz cachaça de cana sem agrotóxico. A Triumpho, de São Pedro (PE) já chega à Alemanha. Terminou o embargo fitossanitário japonês à manga de Petrolina. O Carrefour abastece sua rede mundial com uva de mesa, sem semente, de Juazeiro. O mel sem contaminação do Maranhão (Santa Luiza de Paruá ) e do Piauí (Serra da Capivara) é uma especialidade consumida pelos alemães. O Ceará exporta flores tropicais, peixes ornamentais etc. Um novo produto ecologicamente correto surge no horizonte. A Embrapa desenvolveu o algodão naturalmente colorido. Chegou ao bege em 2000, em 2002 ao verde, em 2004 ao marrom avermelhado e promete para breve o cinza e o azul. Essa variedade dispensa a etapa do tingimento, a mais poluente de águas em todas as operações da indústria têxtil.

Transposição de 1% do Velho Chico fornecerá boa água a 10 milhões de famílias e abastecerá cidades como como Fortaleza e Mossoró

A região mostra atividades compatíveis com água escassa e bem administrada: a carcinicultura, a caprinocultura, a floricultura, a fruticultura, a vitivinicultura e a apicultura. Em alguns casos, as sinergias alavancam: a tilápia, alimentada com derivados de soja, pode ser produzida em grandes reservatórios, tipo Sobradinho e Paulo Afonso, por pequenos produtores integrados a grandes unidades de processamento. O filé de tilápia tem uma espetacular perspectiva mercadológica. O álcool anidro tem potencial no Nordeste. A adição de 3% de etanol à gasolina, aprovado pela Dieta japonesa, equivale a 15% da atual produção brasileira. Hoje o Brasil exporta 2 bilhões de litros de etanol. Com o Japão, se dobraria o mercado. A Petrobras seria a comercializadora ideal, pois é necessário minimizar o resíduo tóxico e equacionar o problema dos navios-tanque químicos. O álcool da velha Zona da Mata pode ser reforçado com a extensão sucroalcoleira pelo eixo de Carajás. O Brasil irá agregar 5% de biodiesel em 2008 para o consumo interno. A questão envolve logística. É possível combinar múltiplos óleos vegetais com etanol. A mamona, o óleo de palma e a soja são candidatos à produção de biodiesel. De início, é melhor vender o óleo; porém, se a produção crescer, haverá uma enorme sobra de glicerina. A química da glicerina terá que ser objeto de pesquisa. Aliás, o buriti e a carnaúba devem ser mais pesquisados. O buriti promete a criação de um plástico que absorve luz, desenvolvido pela UNB. O Nordeste, como locomotiva para o Brasil, exige superar limitações energéticas. É prioritária a usina de Belomonte, Tocantins. Paralelamente, explorar-se-ão as alternativas eólica, de co-geração energética usando a biomassa da palha e bagaço de cana e a capilarização do suprimento de gás. A vulnerabilidade hídrica pode ser inteligentemente combinada com o abastecimento urbano e industrial e a agroindústria baseada na pequena produção sofisticada. O pessimista de plantão falará das limitações hídricas do São Francisco. Esquece que as barragens regulatórias em Minas podem melhorar a vazão de Sobradinho. Principalmente, se esquece de que o Tocantins tem toda a água do mundo à disposição. Dirá que são investimentos colossais. Façamos a conta: os projetos estruturantes - a transposição e duas ferrovias - representam R$ 13 a 14 bilhões nos próximos três anos. Para um país que gasta mais de 80 bilhões com os juros de dívida pública por ano, e se "orgulha" de pagar a mais alta taxa de juros reais do planeta (o dobro da turca, segunda colocada ) aquela não pode ser uma cifra que intimide uma fiscalidade com o olhar no futuro.