Título: Gestão sem transparência foi herdada dos militares
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 06/07/2005, Especial, p. A12

Primeira estatal a ganhar uma CPI com seu nome, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) depende da temperatura política para escapar imune a reformas. Durante o depoimento de nove horas na semana passada do deputado Roberto Jefferson, o relator da CPI, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), foi o único a expor seu espanto diante da pouca transparência da gestão da empresa. O tema Correios sumiu em seguida: todo mundo, inclusive o depoente, só queria discutir o "mensalão". Os contratos de publicidade da ECT, da ordem de R$ 90 milhões, chamaram mais atenção da oposição que uma megalicitação para a criação de um sistema de emissão de contas de R$ 4,3 bilhões, por envolverem a agência de publicidade de Marcos Valério, o suspeito de operar um esquema de suborno de deputados em favor do PT, que irá depor esta semana. Os governistas permaneceram na defensiva. A ECT é uma verdadeira anã frente a Petrobras. Só o lucro líquido da estatal de petróleo no ano passado, de R$ 17,8 bilhões, é aproximadamente o triplo de toda a receita dos Correios, da ordem de R$ 6,4 bilhões. A ECT banca investimentos da ordem de R$ 600 milhões por ano, ante R$ 20 bilhões da Petrobras. A empresa de correios se destaca frente às outras estatais, contudo, frente ao seu porte, à sua capilaridade, à confusão jurídica do mercado em que atua e à tradição militar em que foi criada. É uma cultura que fez com que seja, ao lado da Caixa Econômica Federal, uma das duas empresas federais que atuam em áreas concorrentes à iniciativa privada com 100% de seu capital em poder da União. São 103 mil funcionários, distribuídos em 11,7 mil agências em todos os 5.562 municípios do país. "Há mais agências dos Correios do que templos da Igreja Católica ", comentou o ex-ministro das Comunicações e deputado Miro Teixeira (PT-RJ). Somente no prédio central, em Brasília, trabalham 3,8 mil funcionários, número maior do que os empregados de Furnas Centrais Elétricas. A complexidade da empresa, que lida com contratos de informática e com compra de protetores solares para carteiros, administra 23 linhas aéreas e uma frota de 25 mil bicicletas, não foi acompanhada por mecanismos de controle e transparência. "A ECT está completamente fora do controle do governo. É blindada contra as correções. Em relação ao que é hoje e o que era há doze anos, não há diferença", afirmou o secretário administrativo do Sindicato dos Empregados da empresa em São Paulo, Rogério Trabuco. Monopolista na distribuição de correspondência, a estatal busca crescer na transmissão de bens e serviços por novas tecnologias, uma área em que compete com o mercado. E nesta competição tem obtido vitórias sucessivas. "Estamos falando de uma corporação fechadíssima, um Estado dentro do Estado", acusa o presidente da Associação Brasileira da Indústria Gráfica (Abigraf), Mario Camargo. Empresários concorrentes e fornecedores, sindicalistas e ex-dirigentes convergem para um diagnóstico sobre a raiz dos problemas: o berço militar em que a empresa foi formada, quando em março de 1969 foi elevada da condição de departamento para a de uma estatal. Durante dezesseis anos, a ECT foi administrada por dois oficiais do Exército da arma de engenharia, Haroldo Corrêa de Mattos e Adwaldo Botto de Barros. Ao se iniciar o regime civil, a ECT tinha excelente imagem pública sobre a qualidade dos serviços, mas aprendera a fechar-se em si mesma. Os problemas se estendem ao longo dos anos: presidentes da estatal se despediram trocando denúncias contra seus superiores, como foi o caso de Egydio Bianchi (1997-2000), ou por denúncias contra o comandante da empresa ou auxiliares, circunstâncias das quedas de José Carlos da Rocha Lima (1990-1993), Henrique Hargreaves (1995) e João Henrique (2004-2005). Ao expor o problema durante o depoimento de Jefferson, Serraglio elencou duas hipóteses para explicar o atual escândalo da corrupção nos Correios, todos indicando para esta mesma direção: a primeira possibilidade lembrado pelo relator é uma briga restrita entre um fornecedor que se voltou contra um funcionário corrupto de terceiro escalão que o prejudicava. A outra, a de que o fato de 70% das licitações se concentrarem em uma diretoria poder ter gerado uma guerra entre as diversas áreas da empresa, expandida para um conflito entre os partidos. Em qualquer das circunstâncias, perpassa o controle frouxo. Só isso explica, relatou Serraglio, a ECT ter revogado 140 atos administrativos e licitações no último anos. "É um indício que os preços de referência usados nas compras não se relacionam com o mercado. É um sinal da prática de se conversar antes com os fornecedores de forma que o edital da licitação, quando publicado, não queira dizer mais nada", comentou o pemedebista. Instituição presente em todos os municípios, a ECT padece dos piores problemas que um crescimento horizontal pode gerar. "Não há sentido em uma corporação ter 25 diretorias regionais, que não se limitam à operação, mas palpitam sobre planejamento e compras. Cada uma se comporta como um reinozinho em seu feudo. É uma cultura muito difícil", exemplificou Hassan Gebrin, presidente da estatal entre julho de 2000 e agosto de 2002, que tentou reduzir o total de regionais. O resultado, em termos globais, constrange a empresa no momento em que ela luta para manter sua posição monopolista no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar contra os Correios na ação que avalia se é legal ou não o monopólio postal, Marco Aurélio Mello citou o mau resultado da empresa, com déficits operacionais constantes cobertos com a receita não-operacional, como um exemplo de má gestão. O magistrado procurou ligar o resultado ruim ao uso político que se faz da estatal. "A presidência da estatal é disputadíssima", destacou em seu voto, "assegura, ao detentor, a possibilidade de preencher mais de 120 cargos no alto escalão, entre diretores e coordenadores regionais", afirmou, ignorando que no governo Lula a ECT não ficou sob o comando único de um partido em nenhuma de suas duas gestões e que mesmo no governo Fernando Henrique era loteada politicamente. Quando o PSDB tomou conta da estatal, produziu o anteprojeto da lei postal, que previa a transformação da empresa em sociedade anônima de capital misto, o fim do monopólio, com garantias de reserva de mercado por 20 anos, a possibilidade de associação com outras empresas em subsidiárias, a criação de uma agência reguladora do setor custeada por um fundo, a ser pago pelo mercado. O anteprojeto, encaminhado em 1999, acabou não sendo votado pelo Congresso. Sindicalistas e a oposição de esquerda viam na proposta a porta aberta para uma privatização. O setor privado temia o fortalecimento ainda maior da ECT nos setores onde há concorrência. Na exposição de motivos que acompanhou a proposta, assinada por três ministros, estimava-se que apenas 34% da receita operacional dos Correios vinham de setores protegidos pelo monopólio, ou seja, correspondências simples. "A ECT é deficitária operacionalmente, o azul se dá pelas aplicações financeiras. Os Correios disputam mercado com mais de 4 mil empresas e aí se abre uma arena de conflitos", diz Miro que, a exemplo de outros ministros, não teve sucesso na redução de despesas da estatal - descontada a inflação, a despesa total multiplicou-se por seis em dez anos.(C.F.)