Título: Exemplos do mau uso do dinheiro público
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 08/07/2005, Brasil, p. A2

O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), presente à reunião organizada pelo deputado Delfim Netto (PP-SP), a pedido do presidente Lula, para discutir com empresários, parlamentares e ministros a proposta de um novo programa fiscal, deu um depoimento do que vê como "gorduras" e "desperdícios" no uso do dinheiro público. Começou dizendo que acha que há muito espaço para cortar e racionalizar o gasto. "A Câmara dos Deputados gasta mais do que necessita", disse. Contou que devolve, todo mês, a verba de R$ 8 mil que o presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), acrescentou ao orçamento de cada parlamentar para que contratassem mais funcionários em seus gabinetes. "Fui contra, não é necessário e devolvo", disse Gabeira. Devolve também cerca de outros R$ 10 mil de verbas que recebe para cobrir gastos de custeio, como com os correios. "Minha correspondência é quase toda pela internet", atesta o deputado. Severino Cavalcanti, presente ao jantar, não gostou do que ouviu. Em recente pesquisa feita por uma comissão de parlamentares junto aos índios guaranis-kaiowá, após a morte por desnutrição de 38 crianças, Gabeira se deparou com outra forma de péssimo uso do dinheiro público. "Nossas pesquisas revelaram que os gastos da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) são cerca de 90% com atividades meios. Congressos, seminários, hotéis. Só 10% chegam na ponta, que são os índios", contou. "E vimos coisas que são mais do que mau uso do dinheiro. Havia essa euforia de gastos com hotéis, conferências, mas havia também outros tipos de coisa. Por exemplo, a Funasa tem uma frota de 120 carros e, no ano, a média de gasto com conserto de cada um desses carros foi de R$ 11 mil." A comissão analisou as contas da fundação e entregou todos os documentos ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas da União para que sejam examinados, segundo Gabeira. Se houve um forte consensono jantar de terça-feira, entre os 37 presentes, foi o de que é imperativo, urgente, o governo cortar gastos e gastar melhor. Os exemplos de Gabeira fazem parte do cotidiano da administração pública. Só agora o Ministério da Previdência examina 800 mil benefícios sob suspeita de irregularidades. Razão pela qual o governo promete um choque de gestão em áreas como previdência e saúde. "O Estado brasileiro não cabe mais no PIB", começou dizendo o deputado Delfim Netto (PP-SP), no jantar em que apresentou o esboço de uma proposta para eliminar o déficit nominal das contas públicas, estancar o crescimento da dívida interna, reduzir, como conseqüências do programa fiscal, as taxas de juros e a valorização da taxa de câmbio e, assim, criar condições para um crescimento sustentado. "De certa maneira, é verdade. O Estado não cabe mais no PIB, porque gastamos mais do que arrecadamos e a capacidade de investimento do Estado é mínima", concorda Gabeira. De um modo geral, conta o deputado do PV, depois das exposições de Delfim e do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, "ninguém falou que aquela não era uma boa idéia". Ele também acha que a proposta de um novo programa fiscal, que substitua o que considera "a monotonia de combater a inflação só com a taxa de juros", é bem-vinda.

Governo tem de cortar gastos e gastar melhor

"Acho que é uma boa idéia, podemos trabalhar com ela, mas dificilmente os movimentos sociais aceitarão a desvinculação das receitas se antes o governo não demonstrar que está gastando o dinheiro de uma forma muito inteligente, para que eles sintam que a vinculação não é mais necessária. Se fizer a desvinculação antecipadamente a um choque de gestão, vai ser percebida como um retrocesso", salienta. Uma das propostas, que ainda não está madura na área econômica do governo, embora seja parte do programa concebido por Delfim Netto, é aumentar a desvinculação das receitas orçamentárias dos atuais 20% para até 40%, gradualmente, ano a ano. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, disse que tem dúvidas sobre se é preciso aumentar a desvinculação (DRU) ou se basta prorrogar o modelo atual por mais dez anos. "Acho que essa é uma questão política, que é uma idéia que só pode ser feita por um governo que goste do povo e que entre forte com uma proposta nova. Nesse sentido, perdemos o bonde com o governo Lula", lamenta Gabeira, que deixou a base de apoio do governo declarando que sonhou "o sonho errado" e fez severas críticas ao PT , muito antes das denúncias de corrupção e da exposição de uma indistinta relação entre partido e governo. "Acho que, agora, a questão principal é política e não econômica. Como uma proposta de Estado, uma coisa para dez anos, muito possivelmente ela pode ser combustível para a campanha de 2006. Eles estão pensando em criar uma massa crítica e enviar uma proposta de emenda constitucional (PEC) ao Congresso este ano, mas entendo que esse assunto será combustível para 2006." As condições políticas para um debate dessa natureza agora, segundo ele, inexistem. "Não estamos conseguindo discutir quase nada aqui no Congresso. Somos reféns dos fatos. Cada dia aparece um fato novo, assustador. Não há tranqüilidade sequer para instalar a comissão do saneamento, que é uma urgência. Elegemos o presidente mas há duas semanas tentamos eleger o vice e não conseguimos, falta quórum", relata. A crise política, porém, aponta alternativas que já se mostram quase que um consenso, como a redução dos cargos de confiança e o apoio do governo a uma burocracia eficaz e impessoal. "Isso já é um avanço enorme", avalia Gabeira. Mas daí a encontrar apoio político para um plano mais ousado de mudança da própria âncora da política econômica, de monetária para fiscal, é diferente. Hoje, avalia o deputado do PV, "a situação é de um governo em frangalhos", que se apresentar esse projeto, teria, possivelmente, o apoio do PSDB, do PFL e das forças da direita. "Mas nesse momento ele não tem diálogo com a oposição. Na verdade, o governo Lula não tem mais energia para isso. Mal tem energia para sobreviver." Tudo dependerá da evolução dos acontecimentos políticos.