Título: Sem capital privado, país corre o risco de novo apagão
Autor: Eduardo C. Spalding
Fonte: Valor Econômico, 08/07/2005, Opinião, p. A10

O ano de 2005 é de decisões no que diz respeito ao afastamento do risco de o país vir a enfrentar desabastecimento de energia elétrica a partir de 2008. O "apagão", portanto, volta a ser uma ameaça. Daqui a três anos, os atuais empreendimentos de geração de energia elétrica não darão mais conta de atender à demanda, principalmente se o crescimento econômico continuar sua escalada ascendente. Além disso, a recente crise na Bolívia veio demonstrar uma inesperada vulnerabilidade do gás natural como lastro das usinas térmicas existentes e em construção. Como os projetos de construção de usinas geradoras hidrelétricas são de longa maturação, sem dúvida o momento de reativar projetos paralisados e iniciar novos investimentos é agora, sendo grande o interesse dos grandes consumidores de energia no sucesso dos próximos leilões de nova geração programados pelo governo. Contudo, dificuldades nos campos tributário e regulatório estão comprometendo a atração dos capitais privados para os investimentos em projetos de expansão dos ativos de geração de energia. O crescimento excessivo e descontrolado dos encargos setoriais incidentes sobre o setor é uma das principais. Soma-se a isso o fato de que entre os investidores estão os grandes consumidores de eletricidade do país que, portanto, acabam sendo duplamente onerados - como grandes investidores em projetos de autogeração tornados inviáveis e como consumidores -, ao verem frustrado seu objetivo de ter energia competitiva em suas fábricas. Os grandes consumidores de energia são empresas que produzem e transformam matérias-primas básicas como aço, alumínio e cloro, só para ficar nos exemplos mais populares. Representam 90% do saldo comercial da indústria brasileira com o exterior, 27% do PIB nacional e 13% do faturamento do país. Além disso, despendem, anualmente, R$ 33 bilhões por ano com mão-de-obra, respondendo por 40% dos empregos diretos da indústria extrativa e de transformação. Claramente já se esgotou a capacidade dos consumidores de incorporar os novos e crescentes ônus que lhes são impostos. Somente nos últimos oito anos foram criados nove novos encargos e taxas, incluindo CDE, ECE, EAE e Proinfra, contra metade desse número nos 40 anos anteriores. Acrescente-se que dois encargos que deveriam se extinguir tiveram seus prazos de vigência prorrogados. O valor total dos encargos setoriais cresceu de R$ 7 bilhões, em 2003, para R$ 10 bilhões em 2004, com projeção de quase R$ 13 bilhões em 2005. Individualmente, o aumento desses encargos, que montou a 539,9% entre 1998 e 2004, é o principal fator de elevação das tarifas de energia no período. Os tributos não ficaram atrás: subiram 184,2%, na mesma base de comparação.

Setor elétrico virou um grande mecanismo de arrecadação fiscal e condução de políticas públicas

O setor elétrico, pelo seu porte, essencialidade e plena integração na economia formal, transformou-se em um grande e preferencial mecanismo de arrecadação fiscal e condução de políticas públicas. Facilitadas pela evolução histórica do setor e sua exagerada complexidade tarifária, consolidaram-se perversamente situações em que tributos incidem sobre encargos criados para conduzir políticas de governo: cerca de 35% do ICMS pago pelos consumidores finais resultam de sua incidência sobre uma base de encargos setoriais e tributos. Os consumidores de energia elétrica, além de substituir governos e outros contribuintes em obrigações que lhe são inerentes, ainda são tributados ao fazê-lo. Numa visão sistêmica, a GV Consult calculou que, para um aumento de 30% no preço final da energia, o PIB do Brasil perde 1,2% ao ano, e os postos de trabalho desaparecem a 0,7% ao ano. Outra questão é que o setor elétrico tornou-se pouco transparente em relação à transferência de renda que hoje produz entre segmentos da sociedade. Exemplo marcante dessa tendência é dado pelo acelerado crescimento da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), que se destina a cobrir os custos de combustíveis para geração de energia elétrica no Norte do país. Este encargo, que alcançou R$ 3,1 bilhões em 2004, vem privilegiando a expansão irracional desses sistemas de geração - chamados sistemas isolados, por não estarem integrados ao sistema hidrelétrico nacional -, com soluções e equipamentos menos eficientes. Existem soluções emergenciais, relacionadas com as incompreensíveis perdas em energia e combustíveis na região, com o alto preço pago por estes combustíveis e com outras ineficiências e fatores, que poderiam reduzir em R$ 1,6 bilhão por ano os gastos com o CCC Isolado. Com isso, cairiam as tarifas para consumidores de todo país e teríamos importante vitória na batalha contra a inflação, exatamente no seu difícil componente de preços controlados. Acreditamos que nem todo o encargo setorial é necessariamente negativo. E podemos até entender as motivações da máquina arrecadadora, num país carente de recursos, ao transferir para os consumidores da área energética os custos de políticas públicas. Mas discordamos frontalmente dessa prática, por considerá-la grave e lesiva ao interesse do país. Temos a certeza de que a aceleração explosiva e sem controle do número e custos de novos encargos, ineficientes e não explicitados, inviabiliza tanto o setor elétrico como a competitividade da economia. Além disso, onera insuportavelmente os consumidores, grandes ou pequenos, industriais e residenciais. O momento de discutir com transparência e isenção a urgente reversão deste quadro destrutivo é agora, e esta é uma tarefa de todos nós.