Título: BDO Trevisan sente as dores do crescimento
Autor: Nelson Niero
Fonte: Valor Econômico, 08/07/2005, Empresas, p. B2

Auditoria Operação da PF na Schincariol e escândalo envolvendo estatais expõem firma a críticas

Parece o caso clássico de hora errada no lugar errado. Os auditores da BDO Trevisan estavam no Banco Santos quando os fiscais do Banco Central lacraram as portas da sede da instituição de Edmar Cid Ferreira. Eles auditavam o balanço da Schincariol quando os agentes da Polícia Federal prenderam executivos da cervejaria, que foram acusados de terem supostamente montado um gigantesco esquema de sonegação fiscal. Logo em seguida, os holofotes da crise política envolvendo o governo tiraram mais dois balanços auditados pela Trevisan do tranqüilo limbo dos diários oficiais: o dos Correios e o do Instituto de Resseguros do Brasil. Esses balanços saia justa não são, é claro, exclusividade da BDO Trevisan. Outras empresas e bancos que foram citados na extensiva cobertura sobre malas de dinheiro e mensalões são clientes de Deloitte (Banco Rural) e PricewaterhouseCoopers (Eletronorte e Furnas), as duas maiores firmas de auditoria do mundo. Mas o golpe é especialmente duro para a Trevisan, que vem conquistando espaço no mercado com uma estratégia comercial audaciosa na disputa com as grandes marcas internacionais do setor. Ela já conseguiu incomodar duas das chamadas "Big Four": em dois anos passou a Ernst & Young e a KPMG no ranking de auditoria das empresas com ação em bolsa, o único dado público sobre o setor. Em outubro do ano passado, a empresa ganhou a marca BDO, quinta maior organização do mundo por receita, ao mesmo tempo que se desfazia de uma parceria incômoda com a Grant Thornton, que teve o nome envolvido no escândalo da Parmalat. O crescimento acirrou os ânimos da concorrência e não faltaram insinuações sobre um suposto favorecimento do governo, já que Antoninho Marmo Trevisan, que fundou a auditoria há 22 anos, colaborou com o Partido dos Trabalhadores no programa de governo, chegou a ser cotado para cargos de primeiro escalão e hoje está no chamado "Conselhão". Os representantes da Trevisan negam qualquer influência do governo no crescimento da empresa e colocam as insinuações na categoria de intrigas da oposição. Mas os fatos recentes que desencadearam a crise de proporções alarmantes em Brasília somados à chamada "Operação Cevada" trouxeram à tona o fantasma que ronda todas as auditorias diante de um escândalo desde que a Arthur Andersen foi extinta: como preservar a credibilidade, um ativo inestimável para quem vende serviços de auditoria e consultoria. "Fomos pegos de surpresa", admite Eduardo Pocetti, diretor de auditoria da BDO Trevisan, referindo-se à operação da PF que prendeu seus clientes da Schincariol. "Ainda vamos nos reunir com a administração para saber o que aconteceu." Pocetti diz estar tranqüilo com relação ao trabalho de auditoria feito na empresa, assim como nos Correios e no IRB. Ele lembra que, no caso da cervejaria, o parecer que acompanha o balanço, publicado em maio deste ano, está "limitado", o que no jargão do setor quer dizer que o auditor encontrou problemas que limitaram a extensão do trabalho. Um parecer "limpo", sem problemas, tem geralmente três parágrafos. O da Schincario tem oito. Há uma ressalva - ou seja, uma restrição que prejudica o entendimento do balanço - sobre duas empresas do grupo, uma na Ilha da Madeira, outra em Manaus, que não tiveram seus números checados por nenhum auditor independente. O parecer também faz menção a várias transações financeiras entre empresas do grupo, cuja realização é duvidosa. No dia que veio a público a operação da PF, o comitê técnico da Trevisan chamou o sócio que assinou os balanços da Schincariol para debater o assunto. "Não encontramos problemas", diz Pocetti. "O trabalho de auditoria foi feito dentro dos padrões." Para um leigo não versado nos meandros da auditoria de balanços é inevitável o choque com o que foi alardeado pela PF: um enorme esquema de sonegação que teria desviado cerca de R$ 1 bilhão em cinco anos. As auditorias não checam 100% das operações feitas por uma empresa. O trabalho é feito por amostra, com testes em áreas críticas. Assim como no Banco Santos, a BDO Trevisan "entrou" na Schincariol em 2004. No primeiro ano, os exames são mais rigorosos, por que o auditor ainda não conhece o cliente e, à vezes, o setor em que ele atua. Antes, a Schincariol era auditada pela Tufani, Reis & Soares, uma firma de pequeno porte. Procurado, o sócio Francisco de Paula dos Reis Júnior, que assina o balanço, não retornou as ligações. Além da auditoria dos balanços, a BDO Trevisan também foi contratada pela Schincariol para fazer um estudo sobre a tributação no mercado de cervejas. "O auditor não é polícia", afirma Oswaldo dos Santos Fonseca, sócio da BDO Trevisan responsável pelo trabalho de auditoria na Schincariol. "O trabalho para detectar fraudes tem procedimentos distintos de uma auditoria de balanço." Ele lembra que "a profissão é altamente normatizada", e que todos os passos foram seguidos. Para Bengt Hallqvist, especialista em governança corporativa, os auditores têm a responsabilidade de descobrir fraudes, mas "se escondem atrás de formalidades". "O que é preciso saber é a situação real das finanças da empresa, e não se os números estão de acordo com as práticas contábeis", afirma. O Conselho Federal de Contabilidade tem normas específicas para casos de fraude e erro. Segundo o CFC, "o auditor não é responsável nem pode ser responsabilizado pela prevenção de fraudes". No entanto, deve planejar seu trabalho "avaliando o risco de sua ocorrência". O CFC lista vários indícios que merecem atenção, como alta administração controlada por um pequeno grupo, estrutura empresarial complexa aparentemente não justificada, deficiências de controle interno e administração de reputação "duvidosa". Braços do CFC nos Estados, os Conselhos Regionais de Contabilidade são responsáveis pela fiscalização da profissão e podem abrir processos internos, cujos resultados não vêm a público. "O alcance do trabalho de auditoria é muito grande", diz Gildo Freire de Araújo, conselheiro do CRC-SP. "É preciso estabelecer se o auditor teria como saber que havia a fraude." Houve mudanças na atitude dos auditores depois dos escândalos de Enron e WorldCom, que provocaram a quebra da Arthur Andersen - até então a mais respeitada firma do setor. Os auditores não viraram polícia, mas vários profissionais ouvidos pelo Valor admitem que a crise do setor tornou a gestão de risco uma questão de vida ou morte. "De cada dez propostas, ficamos com uma", diz Henrique Luz, sócio da PwC, que está entre as quatro maiores auditorias do mundo. Quanto aos possíveis problemas nos clientes Furnas e Eletronorte, Luz comenta que é prática adotar mais procedimentos de checagem quando há suspeitas. "Mas no momento não há nada concreto, e a auditoria só deve se pautar por fatos concretos", acrescenta. A Deloitte, outra "Big Four", não quis se pronunciar sobre o assunto. A BDO Trevisan afirma ter critérios rígidos para a aceitação de clientes e que em nenhum momento a questão comercial atrapalhou esse controle de qualidade. Segundo Pocetti, foi levado em conta o histórico da Schincariol e o fato de o setor de bebidas ter um alto índice de sonegação. "Não podemos pré-julgar." Pocetti lembra que os executivos da cervejaria queriam melhorar a governança corporativa para uma futura abertura de capital. "Eles estavam dispostos a seguir nossas recomendações para limpar o balanço", afirma. Agora, Pocetti diz que terá que avaliar se continua ou não com o cliente. Se ficar, será inevitável uma nova bateria de testes à luz das revelações da Polícia Federal.