Título: Dívida pública e administração de liquidez
Autor: Márcio G. P. Garcia
Fonte: Valor Econômico, 08/07/2005, Brasil, p. A11

É excelente a administração fiscal que vem sendo feita pelo Tesouro Nacional desde o final de 1998, quando se iniciou o esforço de geração de superávits primários que perdura até hoje. Esta postura fiscal tem viabilizado a queda da razão dívida pública líquida/PIB, hoje pouco superior a 50%. Aliado à melhora de outros indicadores macroeconômicos, como os significativos saldos dos balanços comercial e em conta-corrente do balanço de pagamentos, além da queda do endividamento externo (público e privado), a atuação firme do Tesouro Nacional tem permitido o fortalecimento de nossos fundamentos macroeconômicos. Isto tem robustecido a economia, tornando-a muito menos vulnerável a crises. É freqüente encontrarem-se referências a um outro fator que pretensamente tornaria nossa economia menos sujeita a crises: o colchão de liquidez da dívida pública , também chamado de "caixa do Tesouro". Por exemplo, quando há poucas semanas temeu-se que a crise política que então começava a eclodir viesse a contaminar a economia, um dos argumentos levantados para negar tal possibilidade foi o de que o Tesouro teria caixa superior a R$ 150 bilhões, o que lhe permitiria manter-se por um longo tempo sem rolar a dívida pública. Tais argumentos parecem fazer implícitamente analogia entre o Tesouro e uma empresa. De fato, se uma empresa endividada, mas dispondo de um gordo caixa, vier a ter dificuldades em rolar sua dívida, ela pode simplesmente resgatar os títulos vincendos via a diminuição de seu caixa. O que é diferente no caso do Tesouro? A resposta tem a ver com a administração de liquidez da economia, que é executada pelo Banco Central. Se, por conta de uma crise, o Tesouro se vir na contingência de só receber propostas muito desvantajosas nos leilões de seus títulos, ele pode, de fato, optar por resgatar os títulos vincendos. Ao fazê-lo, contudo, provocará aumento da base monetária. Isto ocorre porque a conta única do Tesouro está localizada no Banco Central. Assim, quando o Tesouro resgata um título (ou faz qualquer pagamento), o Banco Central transfere os fundos da conta única do Tesouro (que não faz parte da base monetária) para a conta do proprietário do título em algum banco. O crédito das reservas bancárias referentes ao resgate do título no banco onde o investidor tem conta aumenta a base monetária, o que pressiona a taxa de juros Selic para baixo. Se o valor resgatado pelo Tesouro for grande em relação à base monetária, a taxa Selic pode cair muito, colocando em risco a execução da política monetária, que, como se sabe, é realizada via a fixação da taxa básica de juros, a taxa Selic. Pode parecer estranho que o BC tenha que intervir nesse caso para evitar a queda da taxa Selic, mas é fácil de entender. Supostamente, estaríamos em meio a uma crise, com os investidores muito avessos a rolarem a dívida pública. Se, nesse cenário, o BC deixasse a taxa de juros despencar, estaria jogando gasolina no incêndio, ao invés de tentar apagá-lo, como é sua função. Ou seja, o BC se veria obrigado a "enxugar" a liquidez que o resgate dos títulos da dívida pública adicionou ao mercado. Isto é feito através de operações de curto-prazo, nas quais os bancos emprestam recursos ao BC lastreados em títulos da dívida pública. Normalmente, o BC provê remuneração próxima à taxa Selic para tais empréstimos que os bancos lhe concedem.

O caixa do Tesouro é uma boa arma contra soluços de mercado, mas não serve para blindar a economia contra crises de confiança

Portanto, se considerarmos o agregado BC + Tesouro, o que afinal ocorre é bem diferente do caso da empresa. Tal como a empresa, o agregado BC + Tesouro resgatou a dívida vincenda. Mas, bem diferente da empresa, o agregado BC + Tesouro voltou rapidamente à cena oferecendo aplicações de curto prazo para impedir que a taxa Selic caísse. No final, o que o agregado BC + Tesouro fez foi trocar uma aplicação vincenda de prazo mais longo por aplicações no overnight. Esta mudança pode ser até muito interessante. O documento do Tesouro já citado faz alusão "... à primeira semana de agosto de 2003, quando, devido às incertezas no processo de votação das reformas constitucionais, houve um aumento temporário nas taxas de juros futuras, que, a rigor, formam o preço de novas emissões do Tesouro Nacional. Novamente, em uma atitude prudente e elogiada por analistas de mercado, o Tesouro lançou mão de recursos do colchão, evitando, ao cancelar o leilão daquela semana, aumentar o custo de captação do governo, em razão da simples volatilidade do mercado". Nos casos de soluços do mercado, como o acima mencionado, o colchão de liquidez é arma eficaz para evitar que o governo pague juros ainda mais altos. No caso de crises de confiança, entretanto, a história poderia ser bem diferente. Para entender por que, consideremos de novo o agregado BC + Tesouro. O argumento de que o colchão de liquidez poderia tornar a economia mais robusta às crises não faz sentido para o agregado BC + Tesouro, uma vez que o Banco Central sempre pode, salvo restrições legais, comprar toda a dívida pública via emissão monetária. Saber que a dívida pública pode ser monetizada não ajudaria a estancar uma eventual crise de confiança. Em resumo, o colchão de liquidez é arma eficaz para a administração da dívida pública federal em condições normais de mercado. Sua grande utilidade é enfrentar a volatilidade normal dos mercados, evitando que o Tesouro se sujeite a pagar taxas de juros muito elevadas, o que ocorreria se não pudesse cancelar leilões desfavoráveis. Sempre que o Tesouro cancela um leilão, deixando de rolar a dívida vincenda, ele monetiza a economia e obriga o BC a enxugar a liquidez adicional. A grande utilidade do colchão de liquidez não deve, contudo, ser exagerada, conferindo-lhe a capacidade de tornar a economia mais robusta a eventuais crises de confiança. Tudo que o colchão de liquidez pode fazer é suavizar a trajetória dos juros da dívida, mas não pode evitar um aumento brusco dos juros para fazer frente a uma crise de confiança. Para aumentar a blindagem contra crises não há outro caminho senão melhorar ainda mais nossos fundamentos econômicos. Ao leitor que conseguiu chegar até aqui apesar da aridez do tema, agradeço, e prometo tentar voltar a tópico menos técnico da próxima vez