Título: Economia tem anticorpos para resistir à crise política
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/07/2005, Opinião, p. A8

A curto prazo, as chances de a economia se desgovernar são reduzidas, enquanto que aumentaram exponencialmente as possibilidades de agravamento da crise política. A convivência dessa dualidade pode até ser rotineira nos países desenvolvidos, mas não costuma ter uma vida longa em nações em desenvolvimento, como o Brasil. Para que isso seja possível, o país terá de pôr à prova, mais uma vez, suas instituições. Na economia, o melhor caminho a seguir é manter o rumo e evitar surpresas. Na política, aperfeiçoar todos os instrumentos do Estado para que agora se punam, sem restrições e sem exclusões, os responsáveis pela maré montante da corrupção, e, em seguida, se aprimorem os meios para coibir os assaltos aos cofres públicos. Os mercados não apontam turbulências no front econômico e não só pelo fato de que os fundamentos continuam exibindo solidez. As denúncias de corrupção que envolvem o governo abateram a ala petista que representava o único e mais poderoso obstáculo à execução da política do ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Uma outra garantia de que ela não deverá enfrentar contestações importantes no médio prazo foi dada pelo resultado da reunião de fim-de-semana do Diretório Nacional do PT. Os principais cargos da cúpula petista foram renovados, com a remoção de vários membros ligados ao ex-ministro José Dirceu, mas sem que o Campo Majoritário perdesse o leme partidário. Com isso, as investidas da ala esquerda do partido, que se sente politicamente fortalecida com a mudança da correlação de forças interna, foram barradas. As várias correntes que discordam da orientação dos dirigentes afastados têm há muito posições similares ou mais radicais contra o receituário que vem sendo seguido à risca por Palocci. Outro motivo de tranqüilidade para os mercados é a semelhança entre a política econômica do PSDB, o maior beneficiário da crise até agora e a que foi abraçada pelo PT no governo. As análises mais correntes entre os investidores apontam que os tucanos são os que tem maiores chances, até agora, para suceder Lula, desde que não haja um perigoso deslocamento da opinião pública rumo a forças políticas que hoje parecem muito distantes do poder. Se os mercados estiverem certos, há duas hipóteses, ambas consideradas positivas. O governo Lula pode dar uma volta por cima na crise e seguir em frente sem alterações nas bases da economia. Ou, então, Lula se enfraquece a ponto de trazer de volta ao Planalto o PSDB, o mentor da maior parte da fórmula econômica que Palocci aplica com grande habilidade. As discussões sobre a proposta de déficit zero têm reforçado a aposta na manutenção dos pilares da política econômica. Para além de suas virtudes ou defeitos, a receita ocupou um espaço que, em circunstâncias semelhantes e em passado não tão remoto, seria preenchido por tentativas políticas salvacionistas às custas de mais gastos públicos. É mais do que significativo que, mesmo com o governo absolutamente paralisado, não se cogitem fórmulas que abram brechas na austeridade fiscal. Pelo contrário, o debate está centrado em mecanismos para apertar ainda mais os gastos públicos, dando-lhes outra direção e eficácia. A busca do déficit zero, porém, esbarra na crise política e será submergida por ela. O que deve fazê-la sucumbir é uma tentativa, que não é em tese necessária, de criá-lo por meio de dispositivo na Constituição. Como mecanismo básico para esse fim, apenas a desvinculação de receitas precisaria ser aprovada via Proposta de Emenda Constitucional. Na forma impositiva escolhida, ela tromba com a autonomia do Banco Central no manejo das metas da inflação e cria uma rigidez que, de novo, não é vital para a sua consecução. O governo pode se comprometer com superávits primários maiores - algo que possivelmente acabará fazendo sem alardes - e com um "choque de gestão" sem precisar da arregimentação, hoje absolutamente inviável, de três quintos do Congresso, em dois turnos. De qualquer maneira, a pressão por um avanço do arranjo fiscal consolidado pelo governo petista esvaziou ou anulou movimentos perigosos em sentido contrário. As alas fisiológicas, tanto as do Congresso como as que foram criadas no PT, estão imobilizadas pela sucessão de denúncias que as atingem da mesma forma, embora não com a mesma força que paralisou o governo Lula. Sem mudanças, a política econômica tem suficiente anticorpos contra uma crise política de razoável intensidade. Ela necessitava de ajustes, que as turbulências inviabilizaram.