Título: Causas e conseqüências da débâcle
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 12/07/2005, Opinião, p. A9

O primeiro comercial de Duda Mendonça para o PT mostrava um bando de ratos roendo a bandeira brasileira. Em vez de locução, eram exibidas apenas duas frases e a assinatura: "Ou a gente acaba com eles ou eles acabam com o Brasil. Xô, corrupção - uma campanha do PT e do povo brasileiro". Vitorioso, esse partido preferiu, contudo, formar a base de apoio com "eles", rejeitando liminarmente a alternativa de formar um sério bloco de centro-esquerda, conforme proposta de seus quadros mais coerentes, como, por exemplo, os que governam o Estado do Acre e a cidade de Belo Horizonte. A tragédia que está sendo tratada pelo eufemismo de "crise" decorre diretamente dessa opção preferencial por uma maioria parlamentar mercenária e seus desdobramentos em fétidas alianças eleitorais para 2006. Quanto a isto não há a menor dúvida. Nem tão fácil é entender a transfiguração do partido que há 25 anos foi fundado por pessoas da estatura moral de Antonio Candido, Apolônio de Carvalho, Lélia Abramo, Mário Pedrosa, Paulo Freire e Sergio Buarque de Holanda. Entender principalmente como foram se enroscar nas alças de escroques como Marcos Valério aqueles rapazes e moças que 20 anos antes disputavam eleição com o lema "Vote três, o resto é burguês". Cruciais para esclarecer esse processo são as atitudes de dois ex-guerrilheiros fundadores do PT: o paulista, de Taubaté, Paulo de Tarso Venceslau, e o carioca da gema César Benjamin. Em 1995, o primeiro denunciou a existência de triangulações envolvendo prefeituras petistas, realizadas pela empresa CPEM, pertencente a um compadre de Lula chamado Roberto Teixeira. Avaliação interna chegou a concluir que o assunto deveria ser submetido à comissão de ética, mas nada de sério ocorreu depois que o escândalo sumiu das páginas dos jornais. O segundo propôs recentemente uma incisiva síntese da questão, confirmando que financiamento paralelo do PT por bancos e empreiteiras vem sendo feito à revelia da direção nacional e da militância desde 1994. Teria começado assim a ascensão de um fenômeno que ele chama de "esquerda de negócios". Incentivados e promovidos a cargos de direção, os operadores ajudaram a consolidar o poder da tendência "Articulação". As relações internas foram fortemente contaminadas pela circulação de dinheiro, em geral para financiar campanhas e garantir lealdades. E o PT levou para o governo as mesmas práticas testadas e aprovadas na luta interna, mas em escala muito ampliada. Em ambiente mais propício, os operadores passaram a agir freneticamente. O que está sendo divulgado seria uma pequena fração dos malfeitos, segundo Benjamin. Saber a real dimensão do uso do aparelho de Estado para esse esquema de financiamento do projeto petista de poder será importantíssimo para as investigações e punições prometidas pelo ministro Márcio Thomaz Bastos, pois delas dependem não somente a governabilidade, mas, sobretudo, um possível amadurecimento de incipientes instituições republicanas. Todavia, chega a ser irrelevante o lado quantitativo dessa encrenca para as nobres aspirações históricas de toda a esquerda brasileira (que é bem maior que o PT). O já sabido é mais do que suficiente para que passe a pairar uma incômoda dúvida sobre a qualidade moral do diapasão formado por todos os que fazem da luta pela igualdade seu principal compromisso.

No PT, as relações internas foram contaminadas pela circulação de dinheiro, em geral para financiar campanhas e lealdades

Claro, tanto a esquerda quanto a direita sempre tiveram, e com certeza sempre terão, seus libertários e autoritários, moderados e extremistas, honrados e filisteus. Todavia, para que uma e outra se legitimem como possíveis condutoras da sociedade no âmbito de um Estado-Nação democrático, é imprescindível que fiquem acima das mazelas individuais e demonstrem que seu coletivo é realmente portador de liberdade, moderação e probidade. Se no Brasil quase ninguém hoje se diz de direita (apesar de serem tantos) é justamente porque quase só vieram dela extremismos antidemocráticos e escândalos de corrupção. Por isso, nada pode ser mais doloroso para a esquerda brasileira do que se dar conta de que foi estuprada por essa monstruosidade apelidada de "mensalão". Engana-se quem supõe que os prejuízos éticos e políticos ficarão apenas com o PT. E confundem-se ainda mais os que estão festejando e fazendo apressados prognósticos para as eleições de 2006. Parte dos eleitores de Lula que agora se consideram traídos certamente passarão a achar que "político é tudo a mesma coisa", e que nem vale a pena levar a sério a escolha eleitoral. Com essa descrença, o que se enfraquece é a confiança em partidos políticos e - pior - a preferência pelo regime democrático. Neste sentido, sai perdendo até o segmento da direita que é liberal, moderado e honesto, por minúsculo que seja. Há quem queira jogar toda a culpa dessa avalanche de desgraças sobre as costas dos eleitores de Lula, que não atinaram o seu despreparo para o exercício da presidência da República. Será que diriam a mesma coisa se o foco da discussão fosse um balanço sobre questões macroeconômicas, diplomáticas, energéticas, ou científico-tecnológicas? A verdade é que o sapo barbudo está acertando em algumas coisas sobre as quais outros bem preparados governantes da esquerda latino-americana se notabilizaram por errar. Não é razoável, portanto, achar que tudo é farinha do mesmo saco, por mais desastrosa que continue a ser a movimentação de Lula na busca de apoios parlamentares e de aliados para candidatar-se à reeleição. Enfim, em momentos de luto, como este, o mais importante é conseguir exercer o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Esta bela máxima é de um grande escritor (mais europeu do que francês) que não merecia ter sido tão relegado ao esquecimento. Romain Rolland (1866-1944), Nobel de Literatura em 1915, foi um dos mais célebres intelectuais de esquerda que realmente se opuseram à repugnante 1ª Guerra Mundial. E seus artigos políticos estão em livro cujo título serve como uma luva à tão desoladora conjuntura: "Acima da mixórdia" ("Au-dessus de la mêlée").