Título: O estreito limite entre autonomia e responsa
Autor: Camila Duran Ferreira
Fonte: Valor Econômico, 14/07/2005, Opinião, p. A10

Neste ano, o Banco Central do Brasil completa quatro décadas de existência. Juntamente com o Conselho Monetário Nacional (CMN), é o órgão responsável pela política monetária. Os debates que envolvem a condução desta modalidade específica de política tornam-se cada vez mais presentes nos meios de comunicação. Atualmente, as discussões concentram-se nas metas de inflação e na promessa de ampliação do CMN. A autoridade monetária brasileira foi criada no contexto institucional e político do regime militar, pela Lei 4.595 de 31 de dezembro de 1964. O projeto elaborado por Otávio Gouveia de Bulhões, que inicialmente previa uma autoridade monetária independente, foi alterado na gestão de Costa e Silva e permitiu a implementação das políticas econômicas do ministro Delfim Netto. Contudo, as políticas expansionistas da época, baseadas em um processo inflacionário, não lograram a longo prazo alcançar um consenso social que sustentasse esse modelo. Durante a redemocratização, os planos de estabilização de preços surgiram como meios para reduzir a instabilidade do poder aquisitivo da moeda, as transferências de renda geradas pela corrosão inflacionária, assim como mitigar os efeitos da crise fiscal. A frustração pelo fracasso dos planos Cruzado e Collor, assim como a eleição de Fernando Henrique Cardoso por dois mandatos sucessivos, após a implementação e relativo sucesso do Plano Real, confirmaram as expectativas em torno da estabilização econômica. Nesse sentido, iniciaram-se as reformas que permitiram a centralização dos poderes e a autonomia (de fato) da execução da política monetária pelo BC. Em 1986, foi determinado o congelamento da conta movimento, mantida pelo Banco do Brasil no BC, que permitia o financiamento público pela emissão de moeda. A Constituição de 1988 também exerceu papel relevante, ao estabelecer em seu artigo 164, §1º a proibição de empréstimos pelo BC ao Tesouro Nacional. Na década de 90, esse processo de consolidação finalizou-se com o arranjo político que permitiu o fim do uso dos bancos estaduais pelos governadores. A centralização das funções da política monetária representou um ato de delegação de natureza normativa - dos agentes políticos aos técnicos da burocracia econômica -, resultado de uma percepção política maior sobre a complexidade da gestão da moeda e do controle das condições de liquidez da economia. Representou a exigência de uma competência técnica que permitisse uma resposta rápida da burocracia às constantes mudanças econômicas. Em interessante estudo sobre o tema, Lourdes Sola argumenta que o BC é uma modalidade específica de autoridade política. Somente com tal deslocamento analítico é possível identificar os trade-offs próprios desse poder: a eficiência do setor público e a responsabilização política. Dessa forma, o debate sobre a autonomia do BC e as metas de inflação deixa emergir questões para além da eficiência da gestão monetária: trata-se de discutir a legitimidade do processo decisório.

Desenho ideal é isolar autoridade monetária de influências políticas, mas deixar espaço para contestação social

O recente debate em torno da instituição deslocou-se das definições do Copom para a proposta de ampliação do CMN, a fim de incluir membros da sociedade civil em sua composição. Recentemente, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, manifestou-se contra a medida porque poderia acarretar em um retorno à "politização" dos debates, que devem ser essencialmente técnicos. Há um consenso entre os formuladores de políticas públicas e os acadêmicos de que o desenho ideal para uma autoridade monetária é o seu insulamento das influências da arena política. Entretanto, o receio de um "populismo econômico", que dominou o cenário em momentos anteriores, não deve restringir a possibilidade de contestação da sociedade civil. Já é possível perceber alguns avanços no controle a posteriori: uma forte presença do Judiciário e a introdução da prestação de contas ao Legislativo, pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas o controle deve ser também responsável: espera-se um Judiciário e um Legislativo conscientes da complexidade da matéria e preparados para interferir. O debate sobre o processo decisório deve também ser incluído na pauta. As atas do Copom são disponibilizadas mensalmente no site do BC. Contudo, pela leitura desses documentos, mais do que uma justificativa puramente técnica, é preciso extrair uma de natureza política, que determina a escolha do agente público em um horizonte de alternativas possíveis. É relevante ainda tratar das seguintes questões: o problema é a composição do CMN ou a opção pelo sistema de metas de inflação? O CMN toma decisões relacionadas não apenas à definição de diretrizes da política monetária. Será que a inserção de mecanismos de participação da sociedade civil funcionaria para se fixar uma meta de inflação? Um debate púbico ampliado sobre uma matéria de contornos tão complexos pode, tecnicamente, resultar em benefícios econômicos? Por que não reservar a participação mais ampla para determinadas matérias relativas ao Sistema Financeiro Nacional? Os mecanismos institucionais interessantes para este modelo poderiam ser as audiências e consultas públicas, principalmente na regulamentação em matéria de defesa do consumidor e microcrédito. Desta forma, o espaço para a contestação da sociedade civil também incluiria a regulação do mercado financeiro e o papel do Banco Central como agência reguladora, e não somente como autoridade monetária. Enfim, são questões ainda pendentes que, espera-se, não tenham suas respostas nos erros do passado que se traduziram em longos períodos de inflação e uma sensação falseada e temporária de bem-estar econômico.