Título: "Governo só sai da crise se começar a gastar"
Autor: Heloisa Magalhães
Fonte: Valor Econômico, 18/07/2005, Política, p. A8
Entrevista Para cientista político Renato Lessa, sem Lula o PT perderá referência fundamental e terá de ser reinventado
O Partido dos Trabalhadores (PT) tem tudo a perder com a crise política instalada no País. Sua direção sofre, com a série de denúncias feita ao partido e ao governo, "uma derrota política próxima do irrecuperável", segundo avaliação do cientista político Renato Lessa. Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Lessa lembra que "não são pessoas que estão sendo deslocadas, punidas, retiradas de cena, e sim uma estrutura organizacional que foi montada nos últimos dez, quinze anos, que está sendo desfeita". O agravamento da crise destrói um patrimônio político de 20 anos. E o que vai emergir desse quadro é algo "muito difícil de prever". Lessa acredita que a única maneira de o governo conseguir sair da crise seria "governar". Na sua concepção isso não significa reduzir gastos ou melhorar a administração. "Governar significa gastar", diz. "Consertar as estradas, a rede hospitalar, mostrar à sociedade que o governo não está morto", explica. Algo que o governo não pode fazer, simplesmente porque não pode gastar. "É um paradoxo, uma armadilha brutal", resume. Na entrevista que deu ao Valor, o professor Renato Lessa faz ainda duras críticas ao PT por ter, segundo ele, chegado ao poder com um projeto político "extremamente limitado". Ele diz que tem a sensação de que o governo foi inventado depois que foi feito. Segundo ele, o governo Lula pratica um "presidencialismo de animação". Ele explica que houve uma divisão de trabalho: José Dirceu ficou com a parte administrativa; Antonio Palloci com a econômica e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a imagem. Nessa interpretação, Lula "é menos chefe de governo e mais um símbolo". Abaixo, os principais trechos da entrevista: Valor: Qual seria o futuro do PT sem o Lula, caso o presidente não se candidate à reeleição? Renato Lessa: Mesmo que o processo da crise não tenha atingido diretamente o presidente - o que se espera que não aconteça -, é inegável que tudo isso o atingiu de alguma forma. Atingiu sua avaliação, sua percepção da política. Há indicações de que ele estaria muito deprimido - afinal, foi tocado pessoalmente pelo agravamento da crise. Isso tudo provoca um impacto grande na perspectiva da reeleição. É muito difícil saber se neste momento ele tem um projeto de reeleição. Concretamente, a possibilidade da reeleição está muito mais dificultada. Tem a ver com o desgaste do governo diante da sociedade e também com a desestruturação interna do partido que seria o operador organizacional fundamental para essa missão. Valor: Como seria um PT sem Lula? Lessa: Teria que ser reinventado. Exige uma reflexão de como foi o processo de formação do PT, quais os componentes que o constituíram ao longo do tempo. O fato é que de 1989 para cá, crescentemente, a dinâmica do PT passa a se orientar fundamentalmente pela perspectiva de eleger o presidente. O PT começa como um partido basista, olhando para a sociedade, com vínculos sociais muito fortes. Mas crescentemente passa a ser orientado para a perspectiva de conquista da Presidência, portanto ele se lulizou muito nos últimos tempos. A lulificação do partido, ao menos no sentido simbólico, foi muito forte. Um partido sem Lula é um partido que em grande medida vai perder essa referência fundamental. Sem Lula é uma hipótese extrema mas, com certeza, sem a direção orgânica do partido. Essa está sendo posta à prova agora. Está sofrendo uma derrota política próxima do irrecuperável. Estou me referindo ao José Dirceu, ao (José) Genoino, toda burocracia partidária que vinha organizando o PT de 20 anos para cá. Isso é uma coisa importante para ter em mente. Não são pessoas que estão sendo deslocadas, punidas, retiradas de cena. É uma estrutura organizacional que foi montada nos últimos dez, quinze anos que está sendo desfeita. O partido é como estivesse sendo desfigurado, desestruturado de cima para baixo. O que vai emergir daí é muito difícil prever. Valor: O ministro Antonio Palocci é um herdeiro? Lessa: O Palocci é um herdeiro, mas dificilmente com o apoio do que seria a militância média do PT. A razão é a política econômica e as sinalizações que ele emite. Palocci ganha um espaço formidável no governo. Todos nós sabemos que esse governo tinha dois grandes núcleos. Um núcleo grande, em torno do José Dirceu, que está sendo desfigurado, com o (Luiz) Gushiken e os companheiros de longa data que estruturaram a organização partidária, e o núcleo que cuida da política econômico-financeira. Este está intocado. Não só intocado mas, diante da desestruturação do primeiro, começa a avançar numa espécie de colonização da administração pública. Esse núcleo tem compromissos de natureza ideológica, entre outras, com uma certa concepção de política econômica que não tem a cara do PT, independente de ser correta ou justa. A não ser que aconteça uma coisa absurda: que a militância resolva que o partido deva andar mais para o centro e para direita, abraçar como partido as teses do Palocci. Isso implica numa revolução completa, abandono das teses tradicionais, coisa que acho que não vai acontecer. Valor: Para isso, seria mais fácil se fundir com o PSDB. Lessa: Mais fácil e mais barato. Os eleitores agradeceriam, se são tão parecidos porque não se juntam? O cenário é de muito baixa previsibilidade. Um possível é o de uma esquerdização do PT, até como contraponto do fracasso da direção partidária, do centro partidário, como uma forma de se distinguir da política "palocciana". O que resulta disso para o futuro do PT, além de evidente perda de apoio eleitoral, é difícil de perceber no momento.
A estrutura organizacional do partido, que foi montada nos últimos dez, quinze anos, está sendo desfeita"
Valor: O PT está perdendo a bandeira da ética e com a proposta de déficit nominal zero perde capacidade de destinação de recursos para projetos sociais. O que resta? Só o discurso da estabilidade econômica? Não é pouco? Lessa: Eu acho que o governo se pôs numa armadilha de saída muito difícil. A única maneira de sair da crise, do cerco que está inserido, seria governar. Seria um choque de gestão, mas não à moda da administração, da redução de gastos. O governo precisa governar. Governar significa gastar. Consertar as estradas, a rede hospitalar do país, fazer o que o Hugo Chávez pode fazer porque tem US$ 30 bilhões no bolso por causa da conta petróleo. Governar significa isso sobretudo no momento de crise. É mostrar para a sociedade que o governo não está morto, que tem programas para tocar, tem propostas positivas e vai fazê-las. Mas para isso tem que gastar, mas não pode gastar. Na verdade é um paradoxo, uma armadilha brutal. Por um lado, o Palocci é o núcleo de seriedade e confiabilidade do governo. O núcleo que está intocado pela crise, os mercados estão calmos, é por aí que o governo tem para sinalizar que o governo está funcionando. O dólar caiu, o risco Brasil caiu, tudo belezinha. Mas por outro lado, é o abraço de urso. O aspecto mais assustador é não existir política governamental para além do cerco, além da crise que está se abatendo sobre o governo. E o partido não tem capacidade de formulação a respeito disso. Valor: Trocar ministros é uma mensagem eficiente? Lessa: Acho que não. A conversa de mudança ministerial começou há nove meses. Um presidente que tem quatro anos de mandado leva nove meses pensando a reforma, sinaliza hesitação muito forte. Sobretudo quando a mudança ministerial não tem como correspondência a injeção de apoio político partidário ao governo. A reforma ministerial tem baixíssima possibilidade de injetar no governo algum padrão de qualidade que ele já não tivesse, porque o padrão de contenção orçamentária é brutal. Não está havendo dispêndio governamental para além dos que são constitucionais. A troca de ministros é puramente nominal, voltada para a expectativa de apoio parlamentar e alguma calmaria na frente política, não tem impacto na gestão do governo. Valor: O sr. não acha que o discurso do presidente Lula é dissociado da política econômica? Lessa: Houve uma divisão do trabalho neste governo muito curiosa. José Dirceu ficou com a parte administrativa, a composição da máquina do governo; Antonio Palocci, com a parte econômica e o presidente, com a imagem. Eu disse num artigo que fiz há um tempo para "O Estado de S. Paulo" que me parece "presidencialismo de animação". Colegas meus gostam de usar a expressão "presidencialismo de coalizão" eu prefiro "presidencialismo de animação". O Lula ficou cuidando da imagem externa do governo. Dizendo coisas para a sociedade, animando, dizendo que o brasileiro é um povo fantástico, extraordinário, que temos recursos, temos riquezas. Os improvisos do Lula podem até ter a ver com o traço de personalidade dele, mas têm a ver mesmo com esse tipo de papel. Enquanto isso, o governo operava na sombra. Neste sentido, o Lula não tem nada a ver tanto com o que se passa na economia, como o que se passava na gestão da administração, com as implicações heterodoxas todas levantada agora. Lula é um símbolo e um símbolo auto-consciente da sua dimensão simbólica. Nessa divisão do trabalho ele não ocupou o papel do administrador. Ele é menos chefe de governo e mais um símbolo. Valor: O Lula significou a esperança, um novo caminho, mas com a hipótese de que essa esperança perca o brilho, o que o brasileiro vai buscar? Lessa: A resposta não é simples. Ao se configurar essa crise, a ela ter seqüência, agravamento, é um patrimônio político de 20 anos que está sendo destruído. A pergunta é para onde fica esse patrimônio? Esse patrimônio vem sendo muito mal cuidado. A percepção é de que o único objetivo desse trajeto do operário que chega à Presidência era chegar lá. Freqüentemente, tenho a impressão de que o Lula pessoalmente vê a vitória dele como se fosse o ponto final de uma trajetória bem-sucedida. Se avaliarmos a trajetória do Lula desde a primeira liderança sindical até onde ele chegou, concluímos que ele tem uma biografia notável. Mas o projeto político é extremamente limitado. O projeto político não pode ser avaliado somente na perspectiva de ter chegado lá. Tem que ser avaliado na perspectiva de, tendo chegado lá, o que ele vai fazer depois. O PT tem a história bem-sucedida de um grupo de pessoas que conseguiu chegar lá. E para isso mobilizou coisas bem interessantes e generosas na vida brasileira, expectativa, esperança, mobilidade social. Tudo isso é muito bonito, mas estamos falando de poder, de governar um país complexo com 200 milhões de habitantes. E aí? Evidentemente que um projeto calcado nesta mitologia está fadado ao fracasso. O aspecto fundamental dessa mitologia é a excelência do seu personagem. Só um personagem virtuoso e excelente é capaz de ter uma trajetória deste tipo. Só que o personagem virtuoso, excelente, vai se ver diante dos desafios, dos dilemas, das restrições, das escolhas trágicas e, evidentemente, mesmo que se tivesse uma perspectiva de governo claramente definida levaria a algum tipo de frustração porque aquelas coisas todas não poderiam ser feitas. A sensação é de que o governo começou a ser inventado depois que foi eleito. A equipe ministerial revelava composições internas dentro do PT e a tentativa de fazer ajustes para obter apoios, alianças para obter algum tipo do que gostam de chamar de governabilidade. Não houve um momento em que se dissesse: "Vamos fazer primeiro o quê? Quais são as quatro ou cinco questões fundamentais do Brasil?" Com toda honestidade podemos dizer que o Fernando Henrique também não fez isso em 1994. Mas ele veio montado em outra reserva de esperança que foi o Plano Real. E em grande medida, cuidou no governo dele, de manter a durabilidade e a sustentabilidade do plano, além de evidentemente preparar politicamente a sucessão. Valor: O governo FHC deu uma virada com o Plano Real e se segurou nisso. Não foi pouco? Lessa: O contraste entre o governo FHC e o que o antecedeu favorece o governo FHC. Não saímos do governo FHC com a sensação de que saímos de um desastre. Valor: Mas o presidente Lula teve votação muito significativa. O que simbolizam os 53 milhões de votos? Lessa: Uma reserva de esperança forte, de mudança, de reversão do quadro sobretudo de desigualdade social, o que sempre foi o calcanhar de Aquiles dos oito anos de Fernando Henrique. O Brasil melhorou em várias coisas, se modernizou, enfim, uma série de instrumentos de gestão foram aperfeiçoados. Mas muitos de nós interpretávamos a vitória de Lula não como um contraponto aos dois governos de Fernando Henrique, mas sim uma dimensão complementar. O próprio Fernando Henrique naquela altura dizia isso e não para diminuir a vitória do Lula. Naquele momento ele genuinamente indicou isso, até para um certo desconforto do (José) Serra. Fernando Henrique foi muito mais efusivo do que deveria ser ao parabenizar o Lula. O que passou para a população foi: "Agora vamos para o social."
Dirceu ficou com administração, Palocci com a economia e o presidente com a imagem: é o presidencialismo de animação''
Valor: Há algum candidato que absorva essa necessidade que a população tem de esperança? Na ausência de Lula, quem vence? Um candidato certinho do PSDB ou um perfil populista, como Anthony Garotinho? Lessa: O PSDB tem também problemas. Depois da crise, como o PSDB vai se apresentar? Com choque ético? Udenismo? Isso pode ser um capital eleitoral mas pode ser volátil. Pode ter sucesso no curtíssimo prazo, mas é daí? Serra seria mais social? Alckmin seria a opção mais impoluta? Mesmo o PSDB tem problema grave de saber se reedita a aliança com a direta, com o PFL. O PSDB vai apostar numa saída à direita? O PFL tem a perspectiva não de vencer a eleição, mas de aparecer com um vice, com Cesar Maia, embora ele tenha ficado muito enfraquecido no Rio com a crise da saúde. O que é mais claro é que a desorganização do centro político, entendendo-se aí PSDB, PMDB, PFL e PT, dá espaço para movimentos irresponsáveis. Valor: Será que a população não percebe os movimentos "irresponsáveis"? Lessa: Eu sou muito cético com relação a isso. Penso sempre que 49% do eleitorado brasileiro não têm o primário completo. Essa é uma dimensão que poucas vezes é discutida: a qualidade da discussão política no Brasil é muito precária. É muito superficial no ponto de vista da população em geral. O tempo que as pessoas se ocupam com a política é praticamente nulo. Quando o fazem, dispõem de recursos cognitivos e de informação extremamente precários. É uma população, portanto, que em princípio é passível de esquemas de marketing, propaganda e a partir desses esquemas que ela é mobilizada a votar. Valor: Acha que a população de baixa renda é mais descrente, o que faz que com uma crise como essa impacte menos do que entre os mais informadas? Lessa: A gravidade da crise é diferenciada, dependendo do segmento que a percebe. Nos segmentos mais baixos da sociedade brasileira os dramas são de outra natureza, como violência na cidade, desemprego, a qualidade de vida, salário. A política passa na dimensão "sempre foi assim". Mas o fato do PT quebrar é novo. Mesmo com a ideologia do sempre foi assim, havia também uma ideologia difusa de que existe um grupo, um partido, que pretende não ser assim. E se apresenta dessa forma, ética na política. Vamos testar agora entre o que vai pesar mais entre o cinismo difuso, como eles são apenas mais um caso de uma tradição que vem de longe ou a percepção de que ali havia uma coisa diferente, distinta. Valor: Vai haver renovação ampla no Congresso nas próximas eleições? Lessa: Depende das bruxarias que vão fazer no plano da reforma política. Se passar o projeto de lista fechada com todos os deputados atuais como candidatos natos, a renovação vai ser praticamente zero. Deixar com o atual sistema a renovação vai ser muito alta. Valor: O momento é para reforma política? Lessa: Acho que, além de não dar tempo (para as eleições de 2006), é um erro fundamental. Uma coisa é uma crise política, outra é uma mudança institucional. São duas coisas distintas. Estamos vivendo uma crise política que deve ser resolvida politicamente. Ou seja, polícia, Tribunal Superior Eleitoral, Ministério Público, os instrumentos de autofiscalização no Congresso, que não são poucos e quando funcionam têm efeitos importantes. Basta lembrar da CPI do Orçamento, que mudou completamente o modo de organizar o Orçamento no país. É impossível haver comissão controlada por anões. Nosso complexo de vira-lata muitas vezes joga contra a gente. A reforma política é uma mudança que tem implicações de médio e longo prazo. É problemática pelo tempo, pelo fato de que uma crise não é o momento para se pensar numa alteração dessa e pelo fato de que os remédios que estão sendo indicados são remédios que vão reduzir as taxas de democracia que já temos. Mas há problemas que precisam se tratados, como o troca-troca partidário. Algum tipo de fidelidade partidária terá que ser discutido, mas repito que não são essas razões que estamos no olho com a crise. Valor: O PT sai melhor dessa crise? Lessa: O PT é mais do que bandeira ética, tinha compromisso simbólico com mudanças sociais. Só que no governo, o PT enfatizou mais a dimensão da ética e menos da mudança social, pelo fato de ter moderado seu programa. O que se perde com isso não é só essa bandeira como um ator importante no processo de democratização brasileira. Vai fazer falta. O fato desse processo ter sido iniciado de dentro para fora e não de fora para dentro não vai diminuir a saudade que um dia poderemos ter de um partido que tivesse compromisso com os que estão em baixo. Nenhum dos outros partidos brasileiros tem esse tipo de compromisso, nenhum.