Título: Amadeu sustenta cruzada do software livre
Autor: Ricardo Cesar e João Luiz Rosa
Fonte: Valor Econômico, 19/07/2005, Empresas & Tecnologia, p. B3

Política tecnológica Em meio às mudanças no governo, principal defensor do Linux endurece discurso

No saguão do Conjunto Nacional, o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira elogia a estátua de Dom Quixote que decora o prédio, um dos mais famosos da avenida Paulista. Rapidamente, porém, ele afasta qualquer associação do personagem de Cervantes à defesa apaixonada que faz do software livre no governo federal. Diretor-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), órgão ligado à Casa Civil da Presidência da República, Amadeu não acredita estar investindo contra moinhos de vento ao dizer, por exemplo, que as grandes companhias de software tendem a abraçar as tecnologias abertas no futuro, o que significa abrir mão da cobrança das licenças de uso, uma das bases dessa indústria. Nem ao declarar que com o incentivo ao Linux e outras tecnologias abertas o Brasil pode se tornar um exemplo para os demais países, mesmo diante da baixa utilização desses programas nos computadores pessoais atualmente. Com 43 anos de idade e dono de uma visão política que ele define como "esquerda radical-liberal" em sua página no Orkut, Amadeu participou do grupo de esquerda MR-8 na juventude e parece ser capaz de despertar ódios e paixões em igual medida. Suas posições, que incluem a defesa de um decreto que obriga o setor público a dar prioridade aos softwares de código aberto, têm lhe valido muitas críticas, inclusive de entidades do setor. Mas no site de relacionamento Orkut, onde aparece fazendo o "V" da vitória diante do antigo Capitólio em Havana, ele reúne 1001 contatos em sua rede de amigos, tantos que precisou abrir uma nova página, onde já relaciona 20 pessoas. No site, um desses apoiadores afirma que "ser de esquerda, hoje, no Brasil, é apoiar a luta de Sergio Amadeu pelo conhecimento compartilhado como forma de erosão do sistema capitalista". Nesta entrevista exclusiva ao Valor, Amadeu mostra por que provoca polêmica. Ele critica o Banco Central pela recente compra de licenças do sistema operacional Windows; diz que a pirataria ajuda a Microsoft e outras empresas de código proprietário; faz críticas à Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes); e diz que o lobby das companhias do setor já conseguiu contar o que classifica de "mentiras" a novos ministros do governo Lula. Mesmo assim, afirma categórico que na administração federal não há ninguém contra o software livre. Valor: O ITI está ligado à Casa Civil, que acaba de passar por uma mudança importante, com a nomeação da ministra Dilma Rousseff. O sr. já se encontrou com ela? Sérgio Amadeu: Sim, informalmente, mas não conversei com ela. Eu não posso falar pela ministra. A informação que recebi do chefe de gabinete é que não é prioridade mexer no ITI agora, porque o instituto funciona e tem uma agenda positiva. De qualquer forma, o ITI tem uma demanda com o governo. Valor: Que demanda? Amadeu: É um decreto que estava parado na Casa Civil desde dezembro. (O decreto obriga a dar preferência ao software livre nas compras governamentais) Valor: Por que tanto tempo? Amadeu: Porque a Casa Civil consulta todos os órgãos (do governo). Vamos deixar claro: ninguém é contra o software livre no governo federal. O debate é sobre acelerar o ritmo (de adoção da tecnologia). Se não houver um ritmo de implementação, não se implanta. É preciso ter uma ruptura que inverta o processo do uso de software. Valor: Como anda esse processo de consulta? Amadeu: Temos 95 órgãos públicos federais participando do Comitê Técnico de Implementação de Software Livre. Bem ou mal, todos têm algum tipo de aplicação em software livre. Quando chegamos à Esplanada (dos Ministérios), nem 5% dos servidores, os computadores que servem a rede do governo, usavam software livre. Valor: Qual a participação hoje? Amadeu: O uso em servidores já deve estar beirando os 30% da rede do governo. Valor: Mas se a adoção do software livre cresce no governo, porque é preciso um decreto? Amadeu: Precisamos de uma norma que inverta o padrão de compras do Estado. Essa norma foi discutida durante um ano e meio no comitê de implementação e oferecida como sugestão à Casa Civil, que está discutindo (a proposta). O decreto é para que no software básico se passe a adquirir soluções livres. Nos casos em que isso não seja possível, o titular da pasta justifica (a compra). Se não fizer isso, não inverto o padrão de compras. E o lobby é muito forte. O lobby paralisa. Valor: Como assim? Amadeu: Vou dar um exemplo. O Banco Central, cuja política de juro faz o país e o governo ter um ritmo mais austero de gastos, abriu uma licitação para comprar licenças de sistema operacional no valor de R$ 9 milhões. É metade do programa (de inclusão digital) Casa Brasil. Valor: Eles estão comprando Windows? Amadeu: Já compraram. Faz quinze dias... Com o decreto, o que aconteceria? Em vez de comprar R$ 9 milhões, o Banco Central pegaria R$ 600 mil para treinar todo mundo. Algumas aplicações que só rodam em ambiente Windows teriam de ser reescritas. Tudo isso não sairia R$ 1,5 milhão. Então, como defender esses R$ 9 milhões? Queria entender essa contenção fiscal.

Ninguém é contra o software livre no governo. É preciso uma ruptura no processo do uso de software"

Valor: Se o papel do administrador público é decidir pelo melhor para o interesse da população, porque é necessário um decreto? Amadeu: A situação é de monopólio. Para você quebrar a reserva de mercado que existia no governo federal é necessária uma política que envolva inclusive o comportamento das pessoas. Eu queria saber o seguinte: não é reserva de mercado um concurso de escriturário que pede para o candidato saber Word e Excel? Valor: Mas essa não é uma exigência natural, já que esses produtos são padrão de mercado? Amadeu: Do mercado não, esse é o padrão do governo! Se quero quebrar uma situação de monopólio, eu preciso de políticas para fazer isso. Valor: Mas para que uma lei que obrigue a usar o que, segundo o senhor afirma, é indiscutivelmente melhor? Geralmente quando é melhor, as pessoas naturalmente aceitam, não é? Amadeu: As pessoas não gostam de mudar algo com que estão acostumadas. Nós não pagamos propina, não temos escritório de lobby em Brasília. Temos que fazer uma política pública contra o escritório de lobby. Em qualquer mudança as pessoas resistem, mesmo que seja mudar do Windows 98 para o XP. Não é questão de software livre. Eu não estou numa situação em que simplesmente estou escolhendo o melhor. Estou enfrentando o mito, as mentiras do oponente. Existe um lobby ativo, que contrata funcionários públicos para fazer campanha contra nós. Há ex-funcionários públicos que foram trabalhar na Microsoft. Valor: O sr. poderia citar nomes? Amadeu: Prefiro não citar. Se for contestado, eu cito. Existe um lobby em Brasília para manutenção do monopólio do software proprietário. Valor: Várias empresas estão usando software livre, mas a maioria ainda faz uma utilização restrita da tecnologia. Prevalecem os softwares proprietários. Como nenhum lobby pode afetar todo mundo ao mesmo tempo, é de supor que essas escolhas obedeçam a outros critérios, o sr. não acha? Amadeu: Isso é verdade em relação ao sistema operacional, mas não quanto ao conjunto (de software) para servidores. O Apache (servidor de web de código aberto) representa 70% do mercado no mundo. Varia entre 67% e 69%. O Linux é minoritário, mas cresce e já atinge algo como 19% dos servidores. Existe uma disputa monstruosa. A Microsoft mal fazia campanha publicitária. Agora, faz. Insistentemente. Valor: A ministra Dilma já se expressou sobre este decreto? Amadeu: Como eu disse, não posso falar por ela. Agora, temos novos ministros... O lobby já chega em alguns ministros e fala um monte de coisas que não correspondem à realidade. Como por exemplo que a manutenção do software livre é mais cara. Valor: Há um mês, em entrevista ao Valor, Kevin Rollins, executivo-chefe da Dell, disse que o Brasil vai contra a maré tecnológica porque no mundo inteiro o Linux é pouco usado em PCs. O sr. concorda? Amadeu: É preciso resgatar a história. A arquitetura aberta de computador pessoal da IBM viabilizou o software fechado da Microsoft. E a pirataria sustenta esse software no mundo inteiro; dá massa crítica para manter o monopólio. E de onde se extrai a riqueza? Das empresas e dos governos, que não têm como ficar o tempo todo usando o software sem licença. O Brasil pode ser o primeiro país a ter concorrência na área de software de desktop e como isso se dá em uma economia em rede, o mundo vai caindo em torno disso. Onde está a vantagem da pirataria para a Microsoft? Ela mantém o usuário aprisionado a seu modelo. Valor: A Microsoft e as empresas de software proprietário perdem muito dinheiro com a pirataria. As entidades do setor, como a Abes, promovem periodicamente campanhas contra a pirataria... Amadeu: A Abes deveria defender empresas de software, inclusive de software livre, mas ela só defende uma determinada empresa... Valor: Mas a questão é que a Microsoft e as empresas de software proprietário aparentemente tentam combater a pirataria. Amadeu: Aparentemente, não. Elas combatem. Mas onde? Nas empresas. Não combatem nas pessoas físicas. Se eu entrar em uma escola de arquitetura com três policiais e perguntar: quem daqui sabe operar o Auto Cad (software para projetos de arquitetura e engenharia)? Todo mundo levanta a mão. Se perguntar: quem pagou US$ 4,2 mil pela licença? Todo mundo levanta a mão porque eu estou com três agentes da polícia federal. O estudante não tem que ser treinado por um grande escritório de engenharia. Ele aprende, ele usa. Se invadir a casa dele, vou encontrar software pirata. Por isso, eu não chamo de pirata, chamo de corsário. Porque está a serviço da manutenção do monopólio. Valor: Mas não cabe ao governo combater a pirataria? Amadeu: Claro. A polícia tem que combater a pirataria. Eu gostaria que a polícia fizesse mais, mas a minha linha de combate à pirataria não é solicitar que a polícia invada a casa das pessoas. Embora se isso um dia ocorrer, o uso de software livre aumentará. Valor: Não se pode invadir a casa das pessoas... Amadeu: Pode. Para flagrante delito. Esse modelo é voltado para cobrar de empresas, não de usuário final. Então é uma balela esse combate à pirataria. Valor: O sr. cita a Microsoft freqüentemente. O sr. tem alguma coisa pessoal contra a empresa?

O software proprietário cobra de empresas, não do usuário final. É uma balela esse combate à pirataria"

Amadeu: Não, eu cito porque é um monopólio de software de desktop. Exclusivamente por isso. Ela age com lobbies no governo e no começo tentou nos enfrentar. Hoje, não enfrenta abertamente. Valor: Por quê? Amadeu: Acho que ela viu que é melhor enfrentar através de outros (meios). Mas ela sabe que a economia tende a ser baseada em serviços e não em licença de propriedade. Valor: Onde este modelo de serviços deu certo? Amadeu: Se a gente quiser ter vantagens na sociedade da informação, temos que apostar em tecnologias consolidadas e em projetos que ninguém fez. Está dando certo na IBM, por exemplo. Só 20% do faturamento dela vem de licença de propriedade. O resto é de serviços. Valor: Aqui no Brasil a mais famosa empresa de Linux, que é a Conectiva, acabou vendida para estrangeiros e não vemos surgirem muitas companhias que sejam exclusivamente de software livre. Amadeu: A Conectiva já era de estrangeiros. E isso aconteceu porque ela quis fazer um modelo misto, não quis contar com a comunidade, então perdeu apoio e sustentação. Aí foram comprados pelo ABN Amro Bank que deu a uma empresa de software livre uma condução de negócios proprietários. Perdeu mercado. Valor: Que grande empresa exclusivamente de software livre gera resultados para os acionistas? Amadeu: Há uma série de empresas que entram no mercado de software livre e estão se consolidando. Há pequenas empresas de software livre em vários lugares do país, mas não há uma grande companhia - até porque o software livre não trabalha com grandes empresas. Valor: Entre as fornecedoras de software lucrativas, a maioria trabalha com tecnologias proprietárias. E já vemos distribuidoras de Linux com a versão gratuita e a paga, em um modelo semelhante ao do software proprietário. Amadeu: Mas você não está comprando licença, está comprando serviço. Eu baixei o Mandrake (uma versão do Linux), mas poderia ter comprado. Comprado o quê? O suporte. Valor: Você acha que em um cenário futuro todas as multinacionais vão obrigatoriamente migrar para Linux? Amadeu: Obrigatoriamente é forte demais. Vão migrar para uso de software livre no geral, não só Linux. Esta é a tendência. Não adianta as empresas de software proprietário espernearem porque não é possível conter esse movimento. O bem intangível tem uma vantagem: não é escasso. O custo de reprodução é igual a zero. O software livre se aproveita disso para agregar valor. O software proprietário usa a polícia para impedir isso. Valor: Existe um levantamento de quantas empresas brasileiras exportam software livre? Amadeu: Não é claro o registro de exportação de software no Brasil. Registro onde, na balança comercial? Se software não é bem tangível, está na balança de serviços... O que temos são chutes. Não temos um número sobre exportação de software. É preciso criar este indicador. E isso não é fácil pois grande parte do que exportamos é embarcado, sai dentro de um hardware, que vai para a balança comercial. É preciso chegar a uma conclusão sobre o que vamos considerar exportação de software. Exportar software é vender capacitação, desenvolvimento, suporte e licença. Dessas quatro coisas, o que a Índia vende? Licença? Não, desenvolvimento. Podemos exportar desenvolvimento que tem como centro de inteligência o Brasil. Valor: Há divergências no governo sobre software livre? Amadeu: O presidente da República soltou a proposta de PC Conectado só com software livre. Temos o novo ministro da educação, Fernando Haddad , que é um dos grandes defensores do software livre e fará com que ele caminhe mais rapidamente. Insisto: não há nenhuma voz contrária ao software livre no governo. O que há é uma série de ponderações. Existem duas questões importantes agora: Primeiro, se o programa de software livre vai entrar no Plano Plurianual (PPA). Essa proposta está no Ministério do Planejamento desde janeiro e está pronto para entrar na chamada Revisão do Plano Plurianual de Investimento. Isso é definidor. Se existe gente mais ou menos satisfeita não é tão importante quanto as ações concretas. Essa é uma ação. A segunda é o decreto que está na Casa Civil. Valor: O senhor acha que há casos em que o software proprietário é mais indicado do que o livre? Amadeu: Claro que sim, sem dúvida. Pode ser muito custoso substituir, principalmente grandes sistemas. Agora, acho que é preciso estancar o fruto do aprisionamento do passado. Valor: Há algum estudo que mostre quanto o governo federal gasta com software proprietário e qual seria a economia se tudo fosse substituído por software livre? Amadeu: O governo não pode abandonar totalmente as licenças de propriedade. No estágio atual não se coloca isso. O que se coloca é um avanço grande. Acho que se deixarmos de usar software básico proprietário, coisas em que há alternativas já consagradas, como banco de dados, economizaríamos por ano mais de R$ 200 milhões em licenças no governo federal. Valor: Do seu ponto de vista, o processo de mudança para software livre está no ritmo adequado? Amadeu: O software livre está muito forte no Serpro. Os novos desenvolvimentos estão sendo pensados em soluções mutiplataforma ou livres. Quase todos os ministérios tem aplicações em software livre: Cultura, Desenvolvimento Agrário, Cidades... O Ministério da Ciência e Tecnologia ainda não está. Agora temos que ver como o novo ministro vai se comportar. Acho que o bom senso vai prevalecer. O software livre entrou forte em novas aplicações para o usuário. O governo exercia um processo de manutenção de monopólio para o software proprietário. Isso foi quebrado.